Countdown
Faltam dois dias. Com estes e outros amiguinhos ansiosos por nos conhecer.
http://www.globalangels.org/fundraiser/Guludo/
de palavras não sei. apenas tento desvendar o seu lento movimento (ary dos santos)
Faltam dois dias. Com estes e outros amiguinhos ansiosos por nos conhecer.
http://www.globalangels.org/fundraiser/Guludo/
Nesta grande Lisboa que eu amo há: uma tímida e explosiva virgem gótica, um jovem beirão assustado com a capital e voyeur por via das novas tecnologias, um louco-sem-abrigo-mendigo que apregoa tanto Confúcio como Nietzsche, um jovem padre que ama Bauhaus quase tanto quanto teme a Deus, uma senhora taxista que polidamente aldraba turistas ao ritmo de Grieg, um preto que odeia brancos mas também pretos sem raízes, uma esguia mulata que não se decide se ser preta se ser branca, um executivo norueguês que aterra em Lisboa com o peso de uma vida perfeita, um skinhead que tanto detesta pretos como adora animais, um romeno pragmático que trafica carne branca, uma doméstica brasileira que sobe, a custo, na vida, um contabilista então-que-tal-tudo-bem?-tudo-bem!, uma velhota que sofre das cruzes porque não quer sofrer do marido que Deus tem, um fadista que faz tours em lares de terceira idade, tias afogadas num mar de piedade e redenção, mercearias derrotadas por shoppings centers, shopping centers derrotados por hipermercados, hipermercados que democratizam o consumo de uma classe média em ascensão, a rua esquecida por computadores, colégios privados e condomínios fechados, afectos construídos por sms, telemóveis, portanto, facebooks, hi 5's e quejandos, é claro, o vídeo é uma arma, juízes sós e ministérios públicos, jovens que queriam mudar o mundo e se rendem ao gourmet e aos prazeres eternos da juventude, inconsequentes políticos bem intencionados, cachupa e pescada-de-rabo-na-boca e túbaros e caracóis, a luz alfacinha, o bolo rei ou o bolo raínha, o kremlin, o kubo ou o incógnito, alfama em guerra com alcântara, a buraca que não gosta do califa, hei-de encaixar o mergulho nesta amálgama ainda não sei como, também há os irreverentes criativos que não apreciam pragmáticos engravatados e vice-versa, depois os guetos e subsequentes guerrilhas escolares, até desembarques de refugiados com que ninguém contava, um armagedão à escala lusitana e, sobretudo, um punhado de amores possíveis e uma mão cheia de amores impossíveis. Talvez até um terramoto, isto fica por decidir. Tudo isto há na grande Lisboa que eu amo. Sobre tudo isto falarei, porque sim, e tudo isto resulta numa grande salganhada e o consequente o cabo dos trabalhos. Et pour cause, en ce blog il y a une pause.
Read more...Terminado o encontro fortuito, que um técnico apelidaria por coito, de modo a abarcar não só o processo, mas todas as possíveis consequências, ele virou-se para a esquerda, ela para a direita.
Os amantes deram as costas um ao outro no leito e os seus corpos formaram, talvez até conscientemente, uma simbólica borboleta )(
A respiração de ambos foi aplanando e acabaram por embalar na sinfonia colectiva e imutável da cidade, um canto suave, abafado quem sabe em que medida pelas venezianas da janela e pela culpa.
Ficaram assim umas boas duas horas, naquele silêncio recheado, até que ela se levantou com elegância, num capricho de leveza ou num impulso de dignidade, amputando a borboleta da sua asa direita )
Com aquele passo de dança, certo é que fechou um parêntesis de beleza efémera e retomou as rédeas da sua continuidade essencial.
Ele foi deixando-se estar, permanecendo ainda no lado de cá - ou de lá, não é a verdade senão perspectiva? - , até que, com um suspiro, de dormência ou de alívio ou de aborrecimento ou de desilusão ou de nostalgia, se levantou por seu turno, dando o golpe de misericórdia na borboleta mutilada.
Pensa na primeira vez que respiraste: um vento imparável que te entrou pelos pulmões, te assoberbou de espanto e que devolveste com um furacão digno do génese. Que primeiro e marcante berro soltaste! Ainda não vias nada, mas revoltavas-te contra o frio da sala de parto, contra as mãos ásperas do médico que te seguravam enquanto choravas como uma hiena endiabrada, essas mãos que depressa desistiram para te entregar ao regaço sanguíneo da tua mãe, calando-te, permitindo que ouvisses pela primeira vez a voz vermelha, forte, do teu pai finalmente emocionado, por tua causa.
Já eu, recusei-me a respirar.
Não houve médico que me segurasse.
Não conheci o colo da minha mãe.
Não faço ideia onde parava o meu pai.
E não respirei.
Nasci apressado, sem aviso, um mês antes de tempo. Olhando para trás, o meu nascimento prematuro é uma metáfora perfeita do que seria o resto da minha vida: uma ultrapassagem a galope, passando ao seu lado. Vi a vida, mas não a agarrei. Toda a minha existência procurei recuperar o momento primordial da minha existência, o momento de um tal assombro que os pulmões, dotados de auto-arbítrio, se recusaram a funcionar.
Consegui-o uma única vez, tão brevemente como nos primeiros minutos da minha vida, no exacto instante em que me cruzei com um rosto frágil, que parecia caber na palma de uma só mão, um sorriso triste, uns olhos feitos de anis.
Por esse momento, tão breve como um relâmpago, fiquei sem fôlego. Mas ele parece durar para sempre, como a chaga de uma guerra para a qual fosses alistado sem a quereres combater.
Lá no alto, um deus pequenino e solitário dá uma atmosférica dentada em algodão-doce:
Tal deus menor abocanha a nuvem, saboreia, degusta, fura a nuvem. Com a insolência que só a infância permite, espera,
(Faz figas),
Que alguém, lá em baixo, entenda o seu gesto,
Temerário.
Por seu turno, cá no solo, um puto, metido consigo mesmo, dá uma rasteira dentada no insecto:
Tal puto, abocanha, matreiro, perniciosio, uma formiga. Com a insolência que só a infância permite, espera,
(Faz figas),
Que alguém, lá no alto, entenda o seu gesto,
Temerário.
É sexta-feira. Quando chegar a casa, Sérgio vai largar a mala no sofá, despir a farda de consultor fiscal, abrir o frigorífico para servir-se de um vodka tónico (Black Goose, não um vodka qualquer). Não, não vai, porque a bebé exige atenção, Sérgio muda-lhe as fraldas, dá-lhe o biberon e fá-la arrotar. A miúda adormece quando a mãe chega. Jantam. A miúda acorda. A mãe trata da arrumação e Sérgio embala o bebé. Este adormece. A mulher deita-se. Leva a miúda consigo. Embora ainda não tenha quarenta anos, Sérgio sente-se um veterano extenuado, um resto, uma sobra. Diz à mulher que já lá vai ter, faz um desvio no escritório e liga-se ao ITunes.
Nesta noite, Sérgio vai ouvir a música que fez da sua adolescência um período vibrante. Com os fones high-fidelity nos ouvidos, Sérgio grita os versos toscos de Rockaway Beach. Com esta música, Sérgio é transportado para os catorze, em que era conhecido por S Ramone e tinha formado uma banda com um pessoal punk, da Linha.
Estamos, pois, em 1985. Sérgio está de pé, em cima do divã do escritório, e toca uma guitarra imaginária. Faz pose de rock-star, dá saltos mortais, chuta almofadas e atira-se contra a parede. O som do seu instrumento de vento é real. Quase um vendaval. No poster que imagina pregado na parede branca, Joey Ramone (o genuíno) levanta o polegar em aprovação. O concerto é electrizante, inesquecível.
Na porta do quarto um toc, toc, que Sérgio não ouve. Quem pode interromper um solo arrasador como aquele? Quem pode parar a fúria punk de S Ramone, o prodígio da guitarra?
S Ramone, o menino lingrinhas e cheio de borbulhas, sente-se o tipo mais poderoso do universo. Agora, só falta aprender a fumar e entender qual a graça do sabor amargo das cervejas que o seu irmão mais velho costuma emborcar, umas atrás das outras.
Como rock star, sabe também que tem o engenho, e sobretudo o descaramento, para falsificar a assinatura do pai naquele desastroso teste de matemática. Afinal, para que carga de água serve a trigonometria? Um guitarrista não precisa de ir à faculdade, certo?
Sobre o ritmo de Rockaway Beach, S Ramone canta versos criados por ele, que surpreendentemente desencantou sem esforço de um canto obscuro da sua memória. O puto já escreveu canções sobre o fim do mundo, guerras nucleares, pais repressores e professores decapitados em salas de aula. S Ramone acredita no sucesso. Vai vender milhões de discos.
Troca a sua guitarra eléctrica de faz de conta por um violão de mentira. Como profissional do show business, S Ramone sabe que toda a boa performance precisa de um momento romântico.
Essa canção, a única que o Joey Ramone do cartaz não aprovava, foi composta para a Alexandra do 8º B e para a rapariga da capa da primeira Playboy que Sérgio tinha tido coragem de comprar, de cujo nome naturalmente não se lembrava, porque não era o nome que estava em causa.
S Ramone toca lúgubre. Canta o amor, a dor e o sangue escorrendo pelos corredores da escola. No refrão, narra uma cena de porrada no recreio. Até que o vencedor do duelo de boxe categoria pesos-abaixo de pluma (ele, evidentemente), entrega uma rosa para a Alexandra do 8º B ou para a rapariga da Playboy (dependendo da versão).
S Ramone atira a guitarra para a público. Agradece os aplausos e salta do divã. Anda de um lado para o outro, ouvindo a turba ululante ao som de “só mais uma, só mais uma”. Salta de novo para o divã e empunha a sua guitarra vermelha (era vermelha, pois).
Agora, voltamos a 2008. S Ramone transformou-se em Sérgio. Ele já sabe fumar e trata por tu o sabor amargo da cerveja. Em compensação, perdeu, totalmente, o contacto com a Alexandra do 8º B e nunca mais encontrou a sua velha e gasta Playboy.
Mas hoje, quando Rockaway Beach despertar a sua alma gasta, Sérgio vai saltar no divã e dedilhar o ar mais uma vez. Até que a mulher (de boca aberta de espanto) e a filha (de boca aberta de gargalhadas) irrompam escritório adentro, pensando se é mesmo aquele o seu marido e pai.
(para o chefe bacano)
Até para a semana. Ou até sempre.
(Cont.)
O cavalo, entretanto, acaba de engolir a pasta verde que lhe enchia a boca e agora, por um interminável segundo, volta a olhar, sem ver o horizonte. Baixa a cabeça com parcimónia (movimento que é seguido pelas moscas que não há modo de lhe largar as orelhas), esfregando a boca no chão húmido para se livrar de umas flores bonitas que lhe haviam ficado entaladas entre os dentes.
Amélia estava prestes a morrer uma vez mais quando o leitor faz uma pausa no drama, deixando-a suspensa, mas nem por isso expectante, consciente do seu inevitável destino. Marcando a página com intenção de lá voltar, o leitor fecha o livro e abre um exemplar raro da revista “O Cruzeiro”, saída ao prelo nos idos de 16 de Abril de 1878. Faz fé no que agora lê, com a consideração que lhe deve o prestígio do mestre Machado de Assis: numa crítica aí publicada, Machado de Assis, das alturas do Olimpo Literário que conquistou, profere a lapidar sentença, publicada preto no branco e constante de folhas: «“O Crime do Padre Amaro” é imitação do romance de Zola, “La Faute de l’Abbé Mouret"».
Em consequência, o leitor abandona definitivamente a leitura de “O Crime do Padre Amaro”, faz um esgar de desprezo e solta o livro às labaredas da salamandra com que aquecia os pés, condenando Amélia a uma morte desta vez diferente. Antes de sucumbir às chamas, Amélia pensa como desejaria conhecer a irmã francesa inventada por Zola e de quem nunca antes tinha ouvido falar.
Francisco Mendes está prestes a sair do bar quando, numa prova de que a vida é feita de acasos e imprevistos, a equipa visitante, de fracos pergaminhos, realiza uma daquelas proezas de que o futebol é fértil e que fazem dele um desporto de multidões. Contra todas as probabilidades, o trinco dos visitantes, cujos dotes técnicos se resumem no justificado epíteto de “carrega-pianos”, faz um movimento de ruptura que deixa os bem mais dotados atletas da equipa caseira pregados no relvado, de tal modo que o central da equipa hóspede, ferido no orgulho, derruba a pés juntos o adversário. Livre directo, último minuto da partida. Francisco Mendes olha para o televisor e dá um último gole no scotch. O livre é bastante mal cobrado mas o esférico é lançado numa improvável órbita que desafia as leis da balística. A bola ressalta nas costas de um defesa, o guarda-redes não consegue calcular a trajectória ziguezagueante, indo o esférico embater com estrondo na trave e de novo numas costas de um jogador caseiro, agora do guarda-redes, entrando consequentemente na baliza defendida pela equipa da casa e fixando o resultado final: um inacreditável zero um.
O lance incaracterístico e improvável é tomado por Francisco Mendes como um sinal: sai do bar disparado para a estação de comboios, nem sequer passando pelo apartamento para recolher os seus parcos haveres, e aí compra um bilhete só de ida para o apeadeiro transmontano.
A composição atravessará, manhã cedo, um pasto onde um cavalo velho vê a refeição interrompida pelo ruído do monstro circulante. Francisco Mendes, nesse preciso momento, está à janela, mirando o vazio com um olhar fundo, que parece preenchido de tudo o que não vê, como se os montes que lá ao longe o contemplam impregnassem o mirar humano do sentido da insignificância. Repara, contudo, na figura triste de uma pileca e parece-lhe (não sem incredulidade), que o animal baixa a cabeça à sua passagem, como que cumprimentando com sábia familiaridade um ser que, bem vistas as coisas, com ele partilha muito mais profundas semelhanças do que as anatómicas diferenças que aparentemente os separam.
Um velho cavalo rumina, rodando as largas mandíbulas em círculos. O cavalo tem cara de panorama. Olha para o vazio, carrega consigo um olhar dir-se-ia sem fundo, parece preenchido de tudo o que não vê, como se os montes que o contemplam impregnassem aquele olhar equídeo do sentido da insignificância. Por um segundo, parece notar alguma coisa, fracção de tempo em que pára de mascar a erva fresca, mas logo, percebendo que era a mesma árvore de ontem bailando agora com a brisa, retoma o seu eterno afazer com o vagar que os seus dentes gastos exigem.
Por seu turno, Francisco Mendes pede um whisky duplo ao balcão do Dez. Essa é a medida que concede ao tempo até que algo aconteça. Infelizmente para Francisco Mendes, o tempo está-se nas tintas para o seu whisky, o Dez não é um diner de Los Angeles, nem ele é figurante de um filme de série B e, como tal, finda a bebida, nenhum jovem casal de ladrões de trazer por casa ameaçará a freguesia brandindo pistolas e gritando “Everybody be cool, this is a robbery!”, como, num aparente paradoxo, Francisco Mendes desejaria. Francisco Mendes chegou a chefe de contabilidade em esforçados vinte e cinco anos de carreira. Nada de novo se passará neste fim de tarde, à parte talvez mais uma dose dupla com que medir o tempo e mais um jogo europeu que será transmitido no ecrãs reluzentes do Dez.
O whisky, o balcão do Dez e o futebol são mundos desconhecidos para Amélia, rapariga na flor da idade, viçosa, morena e alta. Amélia, ela, não faz mais nada senão representar à risca o seu papel, sempre que algum leitor (e não são poucos) resolve ler o clássico do século XIX, ressuscitando-a. Quando tal acontece, segue o destino que o escritor lhe traçou: vive um amor proibido, engravida, retira-se em consequência para uma quinta nos arredores da cidade sob a vigilância de uma beata fanática, redime-se à custa do único padre que se comporta de acordo com os cânones, até que volta a morrer, do mesmo parto, para percorrer igual via sacra sempre que alguém volte a folhear o romance. Uma adaptação cinematográfica quebrou fugazmente a sua monotonia, mas, como é sabido, o formato audio-visual é efémero e, de qualquer modo, o filme agudiza, em vez de amenizar, a fama de devassa que carrega como uma cruz. Ninguém mudará a sua sorte, o autor finou-se há uns bom cem anos.
(Cont.)
Máxima tardava a responder. Nunca o chegou a fazer. Ia abrir a boca e assim a teve de deixar ficar, suspensa pela expectativa. Sentiu que voava, num improvável salto a galope. De boca ainda aberta, saltou do banco, sem apoio, tentando agarrar-se a qualquer coisa, a sua mão não conseguindo melhor do que fechar-se no ar vazio. A boca sempre aberta, fechou os olhos com força, a mesma força que gostaria de usar para fechar os ouvidos, se ao menos Deus tivesse assim concedido ao homem mais essa vantagem competitiva. Tal serviria para calar a singular orquestra composta de inconcebíveis guinchos de pneumáticos e terríveis acelerações de motores pairando no vácuo. Seguiu-se um som surdo de uma pancada, o baque da sua própria fronte contra uma parede de vidro estilhaçando-se, seguido de um silvo crescente, o som do seu corpo deslizando com o impulso por entre as finas moléculas da atmosfera. Transformou-se pois num projéctil humano disparado para o vazio, de tal modo que naqueles instantes nada via para além de um túnel de luz ofuscante à sua frente, sem que lhe vislumbrasse fim. Naqueles intermináveis momentos voadores, sentiu-se, como nunca mais se sentiria, independente, feita de si mesma, incomensuravelmente distante de tudo.
Pausa. Vazio. E pausa. E vazio.
Algures, o ruído de metais retorcidos por uma pancada brutal conseguiu penetrar de novo na sua consciência.
Voltou a si deitada num cama húmida de urzes, olhando para o cadáver de um automóvel, rodas viradas para o firmamento que não cessavam de girar, fumos saindo de entranhas mecânicas quebradas. Em contraste com a visão dantesca, o que agora ouvia era apenas o gotejar tranquilo da chuva morna que se esvaía, como ela, no cómodo tapete de musgo e urzes a que tinha ido parar.
O terror imobilizava-a. Não lhe doía nada, ainda que sentisse o gosto doce do sangue que lhe descia do nariz até aos lábios por acção lenta da gravidade. Deixou-se ficar quieta, fazendo por crer que tudo aquilo era um sonho.
“Ao menos quando ela chegar não se vai pôr com temores de ser vista por coscuvilheiros. Quando está receosa fica danada, faz-se difícil”, pensou.
Se é que ela viria. Henrique pensou se estava impaciente por que ela viesse ou porque não aparecesse.
Olhou para o seu relógio: pouco passava das sete, mas o breu era opaco. O Outono tinha chegado sem aviso.
“Dou-lhe mais um quarto de hora”, disse para si próprio, “depois disso vou para casa e ela que se amanhe com quem lhe faça outro filho, a começar pelo impotente do marido, e que sustente o que já por cá anda. De qualquer modo, começa a perder o viço”, num monólogo consigo mesmo.
O relógio da vila tinha acabado de soar as sete e um quarto e Henrique, determinado em cumprir a jura que se havia feito, rodava já a chave da ignição, quando lhe pareceu vislumbrar alguém aparecendo por detrás da esquina do edifício. Desligou o motor e apagou as luzes. Seria ela?
Ela viu-o e apressou o passo na direcção do automóvel, rodando o pescoço para trás de quando em vez, à cata de testemunhas inoportunas. Não vendo ninguém, chegou-se com cuidados ao grande Mercedes preto.
Henrique saiu e abriu a porta do lado, um tudo-nada antes de tempo, precavendo Máxima da impaciência que a espera tinha provocado ao amante. O lavrador não estava habituado a depender dos outros.
Já Máxima, mãe solteira na época em que elas não existiam senão por obra do Demo, dependia totalmente dos outros, particularmente do pai do seu filho.
Dependia de Henrique Redondo e de quem lhe calhasse por sorte ao caminho: a propósito, Máxima não podia revelar ao seu amante que a demora devera-se aos avanços atrapalhados do director da fábrica a que ela fingia ir resistindo, num jogo do gato e do rato em que a presa é, evidentemente, o suposto caçador.
Ao longe, no ponto onde o caminho de terra se unia à estrada municipal remendada de asfalto, passou um vulto. Os amantes esperaram em silêncio, ansiando que o sujeito não notasse o carro camuflado sob a copa baixa dos pinheiros mansos. O vulto entrou no seu carro, estacionado no parque da fábrica, ligou o motor e fez-se à estrada.
“Quem era aquele?”, inquiriu secamente Henrique.
Agora é este o cenário: um shopping center de subúrbio com quarenta anos.
Descontando a alcatifa que antes havia galgado e serpenteado os corredores escuros, que foi arrancada para dar lugar a mármore (naturalmente falso), o demais preparo ficou como sempre esteve:
Dois andares de pequenas lojas prestando pequenos serviços, isto é, acessórios de telemóveis, venda de electrodomésticos, videoclubes, bijuterias e bugigangas várias, confecções e roupas berrantes, iluminação para o lar, tabacarias, lavandarias, um cabeleireiro uni-sexo que faz implantes de tranças artificiais ou naturais e até importadas do estrangeiro, restauro de hardware e outras informáticas, a capela de uma igreja baptista, fotógrafos para casamentos e baptizados, decorações para o lar, acolchoados, retrosarias, afins, e por aí adiante.
Cá em baixo, junto à saída das traseiras, um snack-bar discreto neste shopping sumido, a que um pato-bravo, num raro momento de inspiração premonitória, baptizou de “Shopping Babilónia”.
De facto, frequenta esta portuguesa torre de Babel, feita de dois-pisos-dois de galerias comerciais, uma amálgama de gentios de todas as raças, credos, origens, etnias, disposições e feitios que na Amadora se podem encontrar: trabalhadores honestos e, modo geral, bastante feios. "Esta gente", parafraseando um conhecido colunista de um jornal diário, vinga-se do dia a dia o melhor que pode refastelando-se em cadeiras de metal consumidas, atarrachadas por parafusos carcomidos, a mesas de alumínio oxidadas.
No círculo que estas mesas formam formam-se, por seu turno, comunidades (de imigrantes) que se espalham (mornamente cavaqueando) naquela imitação de esplanada
(com tanta descontração como se eles estivessem na sua terra, pensa de si para si Sílvio, contendo silenciosamente, também ele o melhor que pode, o seu desprezo).
É, pois, neste bar decrépito que elas (as freguesas) acomodam os seus rabos rotundos para observar a quantidade exacta de sacos de compras que carregam as demais
(importa sobremaneira, é bom de notar, instalar-se nas cadeiras frias com o máximo de sacos de compras possível, sinal de sucesso no sonho lusitano),
há que fingir conversar com as vizinhas (disfarçando com tragos rápidos de bicas mornas) para poder dialogar, acima de tudo e porque é isso que verdadeiramente conta, com os sacos de compras das outras.
É também na esplanada a céu fechado, que eles (os fregueses) fumam os seus cigarros nacionais (numa uniformidade de gosto que previne o cravanço) e tragam em goles gulosos cervejas de medida comedida (as grandes perdem rapidamente frescura).
Eles estão sentados no ângulo oposto ao balcão, trincando rissóis (quando sentem muita larica) e cuspindo cascas de tremoço (quando apenas a querem distrair).
Contam, nas gargalhadas que enfeitam a conversa reservada a machos, anedotas sobre mulheres. Se uma senhora se aproxima , quase sempre se calam. Ocasionalmente, dirigem-lhes a palavra (o que sucede apenas quando as qualidades sedutoras são unanimemente observáveis pela sabedoria barata daquela horda de alarves).
Estes piropos são lançados do canto onde eles, os fregueses, teimosamente persistem em se plantar:
Tal faz-se junto da penumbra que cerca a casa de banho das senhoras, à boca do trajecto que as senhoras têm de percorrer em passo rápido,
Para escapar aos olhares sôfregos dos senhores.
É, pois, neste bar, chutado para canto de um shopping remoto, que Sílvio, que nunca teve uma mãe (pelo menos que fosse digna da enormidade opressiva da palavra: “mãe”), serve com indiferença freguesas e fregueses.
Sílvio gostaria de passar à acção.
Espancar, talvez até à morte, as pessoas indiferentes. Para Sílvio, há sujeitos que não contam enquanto tal.
Infelizmente para o quadro de valores que foi interiorizando na ausência de superior aconselhamento (materno ou outro), Sílvio sente enorme frustração por ninguém tomar as rédeas.
Sílvio gostaria, é evidente, de fazer justiça pelas próprias mãos mas, não sem hedionda vergonha, resigna-se a esperar que uma mirífica milícia de jovens suburbanos trate do assunto
(Sílvio acredita ainda menos no Governo ou nos políticos, que deram provas dadas que jamais deram, dão ou darão conta do recado).
Espera que uns jovens heróis sujem as mãos por ele, para que as suas possam permanecer limpas.
E assim vai, com a ira que só a cobardia consegue suster, servindo bicas mornas e cervejas de medida comedida àquela gente suja.
Escreveram-me:
"O inútil é o subtrair-se à ditadura das finalidades que acabam por nos desviar do viver autêntico.
Revemo-nos no versos que Alexandre O'Neill escreveu em "Adeus Português"".
«... nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver»
Eis a prova de que a minha mãe é muito melhor do que a mãe da minha vizinha.
Estou equipado com um olhar diferente, hoje em dia. Infelizmente, não se limita, como antes, a raiar a superfície das coisas. Prescruta mais fundo e cai no abismo do horizonte. Esta eficiência é muitas vezes desconfortável, troca-me os passos, cerra-me os olhos, perante a luz tanto quanto perante a escuridão.
Ponho-me no lugar da Velha e tento pensar na quantidade de memórias que terão restado de tudo o que o seu olhar registou. Penso na sua força e tremo. Tenho tantas fotografias guardadas atrás dos meus olhos e mantenho-as numa desarrumação caótica, estão desligadas, lutam entre si tentando ocupar o espaço da outra, numa luta inglória para tomar o lugar que lhes pertence.
Trabalho arduamente nesta tarefa metódica, de dar sentido àquilo que vejo. Por isso registo tudo, faço por notar a mais pequena variação de luz que cada momento cria, tento conter cada pedaço de tempo bem atado dentro de si mesmo – como agora, enquanto a observo da cama, está sentada à luz ténue do candeeiro de secretária que revela apenas uma das faces do rosto contra a escuridão e ilumina o pó que decora a lombada do livro sobre o qual se debruça, o olhar fixo no seu mundo de fantasia.
Está imóvel, a tal ponto imóvel que a sua respiração tranquila chega para transformar o que seria uma fotografia numa cena em tímido movimento, digna de um filme de Bergman. Enquanto a observo enfeitiçado, os lábios carnudos firmemente cerrados, a fronte enrugada pela concentração, todas as outras imagens se desvanecem no escuro da noite.
Sabes como é acordar de um sonho,
Certo de que voas
E que um amigo, que aliás
Jamais conheceste,
Voltou.
E animas-te com a ânsia, breve,
De te fazeres à estrada e de com ele
Sentires nada.
Ou ao menos domar o volante e arrastares contigo
Aqueles que amas
E sentires tudo.
Sabes como é,
Enquanto te escanhoas e contemplas
As tuas sobras no espelho,
Fazes as contas
Ao percentil dos dias,
Dos que transportas no dorso, que
Gastaste em assinar o teu nome,
E o dia começa enquanto conduzes
Dando prioridade
Aos que te conduzem,
Passada aquela fresta de hora, o momento
Solitário,
O dia ressuscita e ultrapassa-te, ele é
Aquele carro,
E mais outro
E mais outro carro.
Amansado pelo caldo verde que a Velha, como todas noites, servira como ceia, chegava a hora mágica em que fazia as pazes com o dia.
A Velha sentava-se no cadeirão de palha e pregava à lareira, beijando de quando em vez o crucifixo, que segurava com força entre as mãos rugosas, salpintadas de manchas castanhas, como continentes num planisfério.
Orar terços, rezar novenas, rogar aos santos que acudissem numa cantilena monótona era tarefa que a Velha desempenhava amiúde, ora com aparente indiferença, ora num fervor que parecia conduzi-la ao centro do universo. Habituei-me de tal modo àquela ladainha contínua, que, se deixava de a ouvir, receava que a Velha se desfizesse em pedaços, temendo que a rotina sonora fosse a argamassa que juntava as peças frágeis do seu corpo mirrado. A oração parecia protegê-la e eu sentia-me protegido.
Tirando as orações, pouco mais dizia. Mas, acabado o terço da noite, colocava a minha nuca no seu colo e os nossos rostos brilhavam com os sonhos que lhe revelava. Era só depois da ceia e da oração que lhe seguia que a Velha ouvia o que eu tinha para contar. Nunca os punha em dúvida, por mais absurdos que pudessem parecer, embora, quando uma noite lhe perguntei se os sonhos se tornavam realidade, ela respondeu-me
“Se não os partires”
“E como os posso partir?”
“Se te agarrares a eles com muita força.”
- Epá, este fim de semana fui almoçar a casa do Pedro.
- A casa de praia?
- Sim, pá. E conheci a mulher do gajo.
- E então?
- Epá, é feia, feia, feia que nem imaginas.
- Pior do que as nossas?
- Nem imaginas, pá.
- Então diga lá, ó Alberto Martins, o senhor é a favor do casamento entre homossexuais?
- Ao contrário da conservadora líder do principal partido da oposição, que acha que se deve chamar outra coisa qualquer ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, nós no PS somos muito progressistas. A resposta é sim.
- Então o PS vai votar a favor da proposta do BE e dos Verdes para admitir o casamento entre homossexuais.
- Não.
- E vai dar liberdade de voto aos seus deputados?
- Somos um partido plural, mas neste caso não vamos dar liberdade de voto.
- Vamos lá ver se entendi? É a favor do casamento entre homossexuais?
- Sim.
- E o PS vai votar a favor?
- Não.
- E não vai dar liberdade de voto?
- Não.
- Porquê?
- Porque a medida não estava no programa eleitoral, portanto o PS não tem legitimidade para a tomar.
- E a nova lei do divórcio, estava no programa eleitoral?
- Não.
É tão gordo, tão gordo, tão gordo, que nunca desaperta a gravata, mesmo quando o calor aperta o pescoço e a gola da camisa se inunda de transpiração: não sobraria ponta de gravata para manter o nó.
Read more...(cont.)
Terei saído porta fora e os carros terão passado ao largo sem que lhes saísse fumo dos bofes, as crianças recém arrancadas ao leito terão feito idênticas birras de sono expressando guinchos sem que um berro lhes saísse das goelas estridentes, uma cadeia em série de mães terá ameaçado a palmada no rabo com a mão aberta, irrompendo-se-lhe esgares mudos de impaciência, o cão vadio que mora debaixo do cornijo na esquina terá mijado no pneu da carrinha abandonada sem que nascesse o riacho delimitador de território canino. Da boca desdentada do vendedor de cautelas, hoje cerrada, sai um pregão, incrivelmente mais sonoro, mais límpido, que atrai as atenções dos transeuntes, que augura TANTOS-MIL-EUROS-SEXTA-FEIRA-ANDA-A-RODA. Hoje o pregão saiu com voz de Manuel Alegre, como se a sorte da nação se confundisse com a sorte da taluda. O painel electrónico estacionado em cima do viaduto, virado para a centopeia com rodas no lugar de patas que entope este carreiro, também esse ofusca tudo, cintilando ESTREIAS e FINAIS DE TELENOVELAS e respectivos PATROCINADORES e EXPOSIÇÕES e concernantes FILANTROPOS.
O chumbo atmosférico mói, dissolve as coisas de que o quotidiano citadino era feito.
Menos a publicidade.
Quero lá saber.
E começou, o dilúvio, como parecia estar escrito, nessa manhã em que um Inverno tomou de assalto o Verão de calendário, sem pedir licença.
E eu sem guarda-chuva.
Nesse preciso momento, escorrego.
Escorrego e deslizo, sobre um mar de folhetos publicitários que jazem na rua, caídos do céu metálico. O asfalto está grávido de celulose.
A camada de papelada empilha-se progressivamente e os limpa-neves (não os sabia nos arrabaldes de Lisboa, mas que sei eu) chegam de imediato e não lhe dão meças, as máquinas também escorregam e deslizam.
Aos folhetos fininhos de publicidade, pequenas lâminas de barbear que esfacelavam os guarda-chuvas dos vizinhos previdentes, sucedem maços de jornais atados por cordas como se empacotados para os diversos quiosques de esquina. Peguei num deles, que me tinha caído com estertor de dilúvio a poucos centímetros do meu corpo, só por acaso não me levou desta para melhor, ou para pior, o que sei eu, e não se tratavam, afinal, de jornais, seriam grossos catálogos de publicidade, viagens em promoção a seguros e catalogados paraísos que cantam, e esses amanhãs anunciados chovem magoando os transeuntes incautos.
Os dias passam e a tempestade amaina, mas não pára. Uma contínua e modorra chuva de modestos mas insistentes folhetos publicitários mantém-se, molhando parvos, acabando por cobrir toda a via pública, uns centímetros primeiro, uns metros passados uns dias. Ao quinto dia de chuvisco publicitário ininterrupto, a papelada chega ao terceiro andar do prédio dos arrabaldes, o estado de calamidade pública foi decretado e o trânsito cessa, deixa de haver condições para a circulação automóvel, os sub-urbanos voltam aos abrigos, e, com eles, a centopeia com rodas no lugar de patas regressou ao casulo deixando o carreiro livre à PROPAGANDA. Ao menos o ruído dos escapes, rotos, remediados ou duplos, cessou, substituído porém por estridentes ANÚNCIOS sonoros a todo o género de PROMOÇÕES, vindos nitidamente da nuvem que não havia meios de embranquecer, nem com o DETERGENTE LAVA-MAIS-BRANCO que os obuses do exército lançavam inclementemente na sua direcção, sem resultados visíveis.
Vá que não vá que vivo num andar alto.
Pela primeira vez na história a televisão passava, a-verde-e-branco, o boletim meteorológico da publicidade.
E ao sétimo dia, a tempestade desabou. Granizaram todos os livros que já ninguém lia, arrastando tudo à sua passagem, rios de papel velho pareciam vingar-se do esquecimento, cascatas de filosofia existencial justificavam a sua existência. Chegaram ao meu andar dilúvios de caderninhos, daqueles de apontar notas, revestidos de cabedal preto, MOLESKINES, milhares de MOLESKINES empilhavam-se até ao meu piso, a janela quebrou-se sob o seu peso, abri um, antes que me afogasse na torrente de caderninhos de cabedal e reconheci, no átomo de segundo que restava da minha existência, naqueles gatafunhos a minha impressão digital, aquela era a minha letra.
Morri, pois, sufocado de milhares de MOLESKINES cheios de inutilidades apontadas por mim.
Morri.
Reencarnei arfante, ridiculamente perturbado, perante a luz laranja que afagava as pálpebras fechadas, anunciando o calor de uma manhã de Verão, como tantas outras.
Os discípulos daquele velho austríaco que expliquem o pesadelo, se quiserem fazer de mim um caso clínico. Por mim, estou-me nas tintas para simbolismos oníricos. Faz-me feliz, esta luz morna de Lisboa que me invade o quarto.
Viro-me para o termómetro pendurado na parede por detrás de mim e o mercúrio parece ter perdido todas as suas coordenadas registando temperatura alguma.
Sinto-me ausente, vendo bem, nada de novo, nem me chego a aperceber de que não se trata de nada de novo, isso exigiria análise, e eu cheguei, no que toca à exploração da inércia, a uma região para lá dos limites conhecidos, não me reconheço nem deixo de me conhecer, sou melhor definição de céptico do que a encontro no dicionário – uma hipérbole de niilismo, eu sou aquele que nem acredita que exista.
Tomo uma dose reforçada de cepticismo, faço de conta de que não é nada comigo e retiro do armário, não, não é esse do pinho barato, o outro, o da kitschenete por cima do lavatório onde jazem os pratos conspurcados de restos de comida de pacote, e retiro a cafeteira engavetada com que costumo preparar o café aromático e fervente (nesta casa a única iguaria é o café de Timor com que enfrento manhãs chatas).
E esta não é chata, é esquisita, mas que se lixe, ponho-o ao lume e imediatamente me apercebo, mas que grandessíssima merda, que as munições acabaram antes mesmo do combate, a chama do pavio a álcool está, nesta manhã de chumbo, esquisitamente inerte, incolor. Cinzenta.
Raios a partam, não me dando por vencido reforço a mezinha, juntando ao preparado, apenas morno, umas pingas do meu scotch, que hoje, que grande porra, não podia senão cheirar a vodka, ou seja a nada, e saber mesmo a vodka, ou seja, a vácuo. Faz por arranhar a garganta e tanto, por quão pouco, é, por enquanto, quanto baste. Pouso a caneca no balcão, sento-me no banco alto comprado nos grandes armazéns suecos, alcanço o controlo remoto e aponto-o para a televisão. Não acende.
Porque me trocaram o ele-cê-dê por esta velha caixa de plástico preto encardido, logo a Grundig da era pré-sonyca que me proporcionava desenhos animados saídos do imaginário da cortina de ferro, aqueles que eram apresentados por aquele sujeito fininho de ar ingénuo, o careca, como é que o gajo se chamava,
Vasco qualquer-coisa,
Vasco Quinta,
não,
(porra, como se chamava o gajo?)
Vasco Granja,
É isso!,
O saudoso Vasco Granja, o que será feito do Vasco Granja da minha infância e o que será feito dos artistas plásticos da cortina de ferro e o que será feito do Marcelo de cabelos ruivos que jogava comigo à bola no campo do bairro e que era sempre chutado para a terceira equipa (como eu), e que protestava e guinchava e chorava de frustração (coitado, precisamente ao contrário de mim, que sempre soube o meu lugar, defesa central da terceira equipa, mas dava o litro pelo colectivo, era o que o treinador de fartos bigodes pregava como um suplente do padre do bairro, e o que será feito do bigodudo treinador do fato de treino do galo desportivo gaulês).
Irra, chega de comiseração infligida, de memórias tão inúteis como aquele sofá de veludo gasto com molas quebradas como algumas vidas, onde já nem eu me sento, deixa-me lá ligar o aparelho.
Acendo a televisão, carregando à manápula no botão de plástico, treque, mudo de canal, treque, nem sinal de recepção da emissão télévisiva, até que o aparelho, retorcendo-se nos seus circuitos internos, emite um zumbido de aquecimentos e o ecrã preto se vai progressivamente transformando em fantasmas esverdeados e os fantasmas dão lugar a figuras nítidas verde-e- brancas, se bem me lembro os adultos diziam que a televisão é a preto-e-branco e eu achava que era a verde-e-branco, sempre tinha mais cor, os graúdos saíram-me uns trágicos. E eles diziam-me que o gato via assim, a preto-e-branco, e eu pensava que o gato, quando acordava, também precisava de aquecer os seus circuitos internos antes de reflectir sobre a sua mansa vida felina(muito reflectia o gato, sempre pensei que ele era o mais introspecto filósofo do mundo),
E por isso é que ele se punha na varanda ao sol horas seguidas, só lhe faltava chamar “Jacaré”, mas o meu irmão mais novo quis antes dar-lhe um nome felpudo, mais digno de um bichano (“Gatucho”), e,
Quando o ecrã escuro se transforma, com vagar e aquecimentos de circuitos internos, em preto-e -branco, as câmaras como sempre, fixam o trânsito que, como todas as manhãs, se desloca como um animal único, uma centopeia de sub-urbanos, com mil rodas fazendo as vezes de mil patas, entupindo carreiros de asfalto, os pontos de reportagem são os de sempre, a SEGUNDA CIRCULAR, a PIMENTEIRA, o NÓ DE FRANCOS, o MERCADO ABASTECEDOR, a PONTE DE ARRÁBIDA, o ESTÁDIO NACIONAL, esses lugares de ninguém a quem as rádios e estações televisivas inventaram um nome.
No aparelho antigo, já aquecido a preceito (até que enfim que alguma coisa aquece nesta história) os sítios a que as rádios e estações televisivas deram um nome aparecem incongruentemente nomeados em caracteres de leste, como os desenhos animados do apresentador fininho, o Vasco não-sei-quê, cirílicos, é assim que se chamavam os caracteres, e não estranho os espantosos caracteres eslavos na televisão portuguesa, e bem assim faço por não estranhar como foi o televisor aquecer internamente com este frio de deitar abaixo o mais resistente dos lobos.
Irrito-me com a interminável centopeia sub-urbana e desligo a televisão, puxando-lhe o fio da meada, perdão, da tomada, agora calas-te, emissão télévisiva, que eu assim ordeno, num gesto fátuo de indivíduo que me dá a ilusão de povo soberano .
Acendo o transístor que me norteará o duche, impedindo que o torpor da água escaldante me adormeça com as notícias requentadas da véspera, mas hoje não sai água quente, os canos gritam mal rodo a torneira, queixam-se, a água congelou com este frio maldito e rasgará as veias da máquina hidráulica se persistir com as minhas intenções salúbricas, que se lixe a higiene, e então resigno-me a fechar a torneira e, de qualquer modo, a rádio não debita notícia alguma, fresca ou reciclada, limita-se a debitar reclames, IT´S A SONE, O REI DOS MEIPULES, O FRANGO É NA GUIA, EU SOU DONO DE UM BANCO, E VOCÊ?, O SÍTIO DOS BONS AMIGOS, HÁ JEQUEPOTE, CRIANDO EXCÊNTRICOS TODAS AS SEMANAS, COM UMA GESTÃO UNIFICADA DOS SEUS MEIOS DE COMUNICAÇÃO O SEU NEGÓCIO AVANÇA, AQUELA MÁQUINA, MEÁRI, COM CAPOTA, SEM CAPOTA, ELE É JIPE É CAMIÃO, O BRILHO CONTÍNUO, VENHA VIVER AS NOITES LONGAS DO CASINO, TIRE FÉRIAS CÁ DENTRO, ESCRITA FINA, ESCRITA LARGA, BIC, BIC, BIC, aproveito a curta pausa musical no programa de publicidade antes que este me dê cabo do tímpano, A PUBLICIDADE SEGUIRÁ DENTRO DE BREVES MOMENTOS, FIQUE COM A SUA RÁDIO, arranco o transístor da tomada, deixo o fio à meada.
Largo decidido o apartamento, entro no elevador, parece-me que entro, até dou por isso porque no elevador o meu nome está afixado como devedor reiterado no papel A4 dirigido aos demais condóminos que ANUNCIA - apre!, nuvens colossais e anúncios ensurdecedores! - anuncia o edital de trazer por casa que NA AUSÊNCIA DE QUÓRUM, A SESSÃO PROSSEGUIRÁ EM SEGUNDA CONVOCATÓRIA NA NOITE DE HOJE PARA DISCUTIR OS TEMAS CONSTANTES DA CONVOCATÓRIA QUE FOI ENDEREÇADA NO DIA TANTOS DE TAL, abro a custo a caixa de correio, sei-o porque o gatilho da fechadura estava entupido com dezenas de anúncios iguais em papelinhos cortados a xizato de empregadas com experiência, PASSAM A FERRO OU ENGOMAM, COZEM E COSEM, E TIRAM O PÓ E FICA TUDO A BRILHAR, DÃO REFERÊNCIAS (bem precisava de referências), e o movimento de torção necessário para que a fechadura entupida com tanto papelinho acabe por ceder fez-me torcer o pulso e noto uma ínfima e breve dor num pequeno músculo do pulso de que não sei o nome, porque provavelmente as rádios e estações televisivas ainda não se deram ao trabalho de nomear, mas com essa ínfima dor volto, por sensoriais motivos que duram infimamente, a dar conta de mim mesmo e a tentar deixar-me de merdas e a fazer-me à vida e no meio deste pesadelo de torpor, pôr-me nos eixos, ordenando-me: “faz-te à vida”.
(Cont.)
Para o amor, essa quimera que engana a inteligência raptando-nos para a adolescência, batam-se quilos de inocência com uma pitada de demência, leve-se ao forno da paciência em lume forte de tolerância, depure-se das excrescências da ganância e da desconfiança, mexa-se o produto com a varinha mágica do sorriso, e sirva-se com total imprudência.
Read more...Desperto a custo, deitado na velha cama de um só corpo, sem percepção inteira da realidade.
Não fora o arrepio que me percorre a nuca, hesitaria em categorizar o meu estado como: “em vigília”.
Levanto-me e não há chinelos que me acudam, estarão a hibernar no velho armário de pinho rasca, escondendo-se do verão no escuro, em diálogo surdo com os radiadores a óleo, os cobertores de lã puída, os anoraques herdados do adolescente que já fui.
Aproximo-me da janela, deixada aberta de véspera para alívio do bafo estival. O ar concreto que invade o quarto violenta-me. Dou-me conta de que tenho ossos. Doem-me com este frio espantoso, especialmente o maldito tornozelo direito nunca refeito da rotura de ligamentos cruzados, mas nem é por isso que os meus passos são tão medidos, cautelosos como se passeasse num bazar do Martim Moniz atafulhado por brique a braques inúteis e senhoras pechincheiras que se atropelam mutuamente, os objectos e as sujeitas, quero dizer. Antes de ser corpo, sou instinto e o que me afrouxa a marcha não é o maldito tornozelo. É o medo.
Um medo irracional, e não o são todos? Não bastava este gelo dos diabos a meio de Agosto, acompanha-o um breu que me põe em cautelas de gato à rasca. Quando finalmente me chego ao beiral da janela, o que observo não faz sentido: um manto de chumbo paira parecendo medir as coisas todas, colossal. Como ele, fico na expectativa.
Até que aquela prodigiosa massa cinzenta de que é hoje feito o céu decide-se e apropria-se da realidade, soberba, desce à terra, imparável, como se fosse uma metáfora da vontade dos deuses, abafa todas as cores por entre a malha negra de que, incrivelmente, é tecida.
O coro colectivo da passarada das traseiras, que ainda ontem cantava, chilreava e gralhava, dando um ténue sinal de vida a este bairro dos arrabaldes, emudeceu. Devem ter emigrado, asas para que vos quero, sem tempo para fazer malas, lá para as áfricas amenas.
Troa um silêncio de morte.
Fecho o silêncio com a janela e recolho-me no conforto do apartamento, mas também aqui paira uma tranquilidade excessiva, ameaçadora, que a vibração do ultrapassado frigorífico não chega a amenizar (há quantos anos não dava ouvidos ao frigorífico, o tipo parecia o pedinte da esquina da Casal Ribeiro, alertando transeuntes que o não ouvem para o fim do mundo que aí vem, mais cedo do que pensam, os transeuntes).
Desperto, assim, em pleno Verão, num insólito Inverno que desceu sobre a cidade, um Inverno tão fora de lugar que apenas contido nas fronteiras da ficção o catalogo como: "verosímil".
(cont.)
Estou tão estafado disto, que qualquer dia passo de Novo-Rico para Novo-Pobre. Bonita ambição: encho o peito de ar, alardeio o meu nível cultural acima da média, desdenho a corja que me rodeia, borrifo-me para a Corporação e vou à minha vidinha: orgulhoso e sem dinheiro para mandar cantar um cego. Ele havia uma starlette qualquer de Hollywood (cujo nome não me recordo, mas, lá está, é uma temática que não me merece muito importância) que rezava assim: "Se queres saber o que Deus pensa de quem tem dinheiro, basta observar a quem o entregou."
Read more...Porque espero, e enquanto espero,
Faço uma rima sobre nada,
Não é de amigo, nem é de amada,
Não tem saída, nem entrada,
Anda fugida,
Aturdida,
Enquanto espera,
E desespera,
Ser inventada.
Dou-lhe forma, enquanto espero,
Escrevo-a, porque quero.
Assinalemos para a postheridade este dia funesto.
O Parlamento acaba de aprovar, com os votos favoráveis de quasi todos os deputados da Nação, o Segundo Prothocolo do Acordo Ortographico.
Manchados ficam para sempre os mandatos que o Povo ludibriado concedeu a essa corja de traedores da Língua Mãe.
Mau grado as doutas recommendações de um heroeco grupo de sábios que, remando vigorosamente contra todas as marés da ignorância, subscreveu uma scientifica pethição destinada a pôr cobro a este jaez acordo, foi hoje dada a última machadada no uso acertado da nobre língua que Camoens tornou célebre.
Os auctores moraes deste atentado perpetrado à correcta ortographia serão implacàvelmente julgados pelas gerações vindoiras pelo damno quasi irreparável que provocaram à Lingua Mater, ao colocarem nesse compromisso ao brasileiro a sua polutha assignatura.
Serão um dia erguidas dignas esculpturas aos defensores da nossa identidade multissecular e do nosso riquíssimo legado civilizacional e histórico.
Salve, de entre todos, ó ilustre poetha Vasco Graça Moura, a tua lupta não será van. Toda a rhetorica desses lacaios das corporações edithoriais brasileiras não conseguirá forçar-nos a escrever como almejam decretar. Usaremos até à eternidade a nossa ortographia, por mais que a apelidem de archaica, e o acordo terá o fim que merece: cortado em fanicos, pela thesoura do desuso.
Lisboa, Eurásia, 2084.
O mundo está dividido em três países, Eurásia Oceânia e Amerísia, em guerra perpétua entre si.
O Partido tomou conta de todos os aspectos da vida numa incessante tentativa de erradicação da individualidade.
A administração pública encontra-se repartida por quatro grandes ministérios – o Ministério da Verdade, que controla a imprensa, o entretenimento e a educação, o Ministério do Amor, que mantém a lei e a ordem, o Ministério da Paz, que se ocupa das questões da guerra e o Ministério da Abundância, que lida com a economia e finanças. Até a linguagem dos cidadãos é regulada pelo Partido em prolixos regulamentos, despachos, leis e instruções administrativas. As conversas entre pessoas são desencorajadas, em benefício da escrita, para que de tudo fique registo. Apenas a informação escrita é reputada como verdadeira, pois só esta permite uma reprodução fiel e autêntica. A Polícia Intelectual tem como função vigiar e prevenir os crimes de pensamento e manter a cidade no mais absoluto silêncio. Cartazes espalhados em pontos estratégicos, desprovidos de quaisquer imagens, reproduzem slogans imperativos: “A Guerra é a Paz”, “A Liberdade é Escravatura”, “A Imagem é Ilusão”, “O Livro Educa”.
Uma massa uniforme de cidadãos adormecidos folheia passivamente os livros editados e controlados pelo Partido. As ideias mais absurdas encontram eco unânime nos homens desde que constem de uma qualquer brochura. Se está escrito, é verdade. A humanidade deixou de pensar criticamente, mergulhado nas letrinhas pretas em fundo branco, alheando-se do mundo físico que a rodeava.
José Silva encontra-se à porta do prédio onde vive e observa o cartaz da esquina. Em letras garrafais: “A Escrita Tudo Regista”.
Abre a porta e o chão do hall de entrada está pejado de cartas, jornais, panfletos, que o carteiro atirou pela fresta da porta. A sua máquina de fax cospe, como sempre, tinta preta em golfadas mecânicas. O rolo de papel já está no fim, uma única página de grande envergadura enrola propaganda governamental e ordens aos cidadãos. A última instrução é a nova versão do Acordo Ortográfico, que impõe regras universalmente aceites sobre a forma como os habitantes da Eurásia devem escrever. Quaisquer discrepâncias são severamente controladas pela Polícia Intelectual e conduziriam o cidadão rebelde ao cárcere.
José Silva notifica o Partido, pela mesma máquina, de ter entrado no seu domicílio.
Vivia uma vida dupla.
Na aparência, parecia respeitar acriticamente todos os ditames impostos. Mas vivia um conflito interior que o dilacerava. Simplesmente acreditava no que via e ouvia.
No entanto, intimanente descria do que lhe davam a ler, se não encontrava correspondência com a realidade observada. Sentia-se diferente. Receava pela sua saúde psíquica.
Evidentemente, não poderia contar a ninguém a aflição que a noção distorcida que tinha da realidade lhe causava. Nem sequer à sua família, formada pela sua mulher e os dois filhos, de cujas mãos todas as noites arrancava, a muito custo e por entre choro convulsivo, os seus inúmeros livros infantis, quando chegava a hora de dormir.
A sua percepção do mundo tinha começado a mudar quando, num antiquário situado num bairro de má reputação, adquiriu um aparelho do início do século. Como membro do Partido, gozava de uma precária liberdade de movimentos que não era autorizada ao cidadão comum. Era uma pessoa curiosa, e um objecto estranho, uma espécie de caixa grande de plástico com um vidro à frente e uns botões de lado, atraiu a sua atenção. O vendedor não fazia ideia do que se tratasse.
Visitou o seu avô, no asséptico lar do Estado onde este estava depositado até ao fim dos seus dias. O avô, um poço sem fundo de sabedoria ancestral, explicou-lhe, por apontamentos a lápis no velho bloco de notas - não fosse um agente da Polícia Intelectual estar à escuta - que, pela descrição do neto, deveria tratar-se de uma televisão. Aparentemente, este objecto antigo conseguia reproduzir as imagens e os sons de acontecimentos ocorridos, fosse a que distância fosse. O aparelho tinha sido inventado na segunda metade do século XX, tanto quanto sabia e lhe contou o avô, como antes lhe havia contado o avô do seu avô. Sorrateiramente, anotou também no bloco que bastaria ao neto adquirir um vídeo, um aparelho que gravava as emissões da televisão, para que pudesse ver, com os seus próprios olhos, que a Humanidade tinha chegado à Lua. Claro, desde que conseguisse comprar uma cassete bem conservada.
À socapa, apagaram os recados escritos com a velha e gasta borracha que o avô guardava dentro do seu maço de tabaco (adquirida por uma fortuna, tal como o lápis, no mercado negro, pois que o Partido não autorizava quaiquer escritos que não deixassem rasto).
José não descansou enquanto não encontrou e comprou, a dinheiro vivo e sem recibo, obviamente, o aparelho de vídeo no mercado negro. Com cada vez mais frequência, e aproveitando-se da sua condição de membro do Partido, que suavizava a vigilância da Polícia Intelectual, foi-se infiltrando nos meios obscuros do mercado negro. A pouco e pouco, foi ganhando a confiança de sujeitos marginais, e acabou por ser admitido num círculo secreto de sujeitos discretos que, em caves escuras de bairros degradados e marginais, observavam imagens de filmes antigos e programas de televisão gravados.
Numa das sessões, visionaram um documentário sobre um escritor da antiga Grã-Bretanha, um tal de George Orwell, que havia escrito um romance muito popular, intitulado “1984”. Esse romance, certamente uma obra encomendada pelo Estado, conseguiu convencer os cidadãos de que um mundo dominado pelo audio-visual seria um mundo de alienados, controlados pelo poder político. Ironicamente, tratava-se de um livro hoje proibido pelo Partido.
Mas aquele grupo de subversivos estava decidido a combater o jugo do mundo irreal difundido pela palavra escrita. Tinham jurado, secreta solenemente, promover clandestinamente o audio-visual e combater, com a vida se preciso fosse, a literacia dos cidadãos.
(Louvado seja o leitor que aguente um post deste tamanho. Já cá não escrevinhava vai para mais de um mês, agora é dose.)
Enquanto percorro a passo de caracol o viaduto Duarte Pacheco, ligo a TSF e oiço, com a atenção que a personagem merece, a última invenção do Luís Filipe Menezes para animar as hostes dos seus correligionários, parece que o homem vai conquistar o poder fazendo do PPD um partido à imagem do Alberto João. Depois escuto, com a atenção que a personagem merece, um não-sei-quantos-qualquer-coisa do partido do governo afirmar que o Luís Filipe Menezes, “esse paladino da liberdade da imprensa”, teve o descaramento de estar presente no congresso do PSD-Madeira, logo agora que os laranjas autonómicos decidiram fechar a porta de tão disputado e emocionante evento aos jornalistas. Sobre os elogios do cara-de-sapo ao ex-Bocassa da Madeira, este tal não-sei-quantos-qualquer-coisa comenta que o PS não comenta declarações de órgãos institucionais no âmbito de funções institucionais.
Desligo, pois, o rádio e observo os colegas de fila. Passo por uma secretária de direcção que penteia as sobrancelhas ao retrovisor, retoque que denuncia, penso eu com os meus botões para me entreter, a secreta esperança de que os olhinhos que ela faz ao chefe sejam finalmente notados e enfim lhe faça o convite para um fim de semana naquela Pousada de Portugal que saiu no último número da Evasões.
Ultrapasso em passo lento um mercedes-classe-s último modelo onde um sujeito bem apetrechado de relógio de bracelete de prata e botões reluzentes de punho enfia o seu anelar esquerdo, provido de aliança de ouro, pela narina do lado de cá, em gestos circulares de uma meticulosa higiene exploratória, enquanto a sua mão direita encosta o seu bojudo e reluzente aparelho celular, carregado de WAPS, GPS, e-mail, 3G e demais gadgets do último grito da tecnologia, à sua orelha direita, que, se for simétrica, como é de prever, à orelha esquerda que não resisto a observar, será pelo menos tão avantajada e peluda como esta. Lá longe, e nunca mais fica mais perto, o écrã gigante do fim da auto-estrada de Cascais fere os olhos da multidão de sonâmbulos condutores suburbanos com ticks das manchetes dos matutinos e spots promocionais da nova telenovela da TVI.
Finalmente rolo a quarenta à hora pelo túnel do marquês (porque ninguém quer ser multado por andar a mais de cinquenta). Quatro fugas, vindos da estátua do nosso déspota iluminado, aceleram bruscamente mal a silhueta do minha carrinha assome à boca do túnel, antes que eu tenha a audaz ideia de entrar à sua frente na fontes pereira de melo. Eu que espere, que a faixa de rodagem é o seu reino. E eu espero, claro, entupindo, atrás de mim, a saída do túnel, e levando, como justa consequência da minha urbanidade inadequada, com um merecido e valente buzinanço do colega dos outros quatro, que também calhava estar de serviço e que levava um cliente apressado no regaço do seu mercedes com trinta anos.
Chegado finalmente ao parqueamento ao lado do escritório e largada a carripana, cruzo-me com o simpático e jovem cidadão das terras de vera-cruz que (o pobre) imigrou para terras lusas tão só para cuidar como caixa do estacionamento do saldanha residence. Com a sua caracetrística voz de falsete, deseja-me um colorido “um bom djia dji trabálho, sinhô Tchiagô”, com aquele sorriso derretido que não procura disfarçar a segunda intenção.
Subo o elevador ao som enjoativo do Jon Bon Jovi e sento-me à secretária, onde o meu pálido colega do lado, perito em créditos, débitos, movimentos contabilísticos e amortizações extraordinárias do activo imobilizado corpóreo, debita-me, como todos os dias, a automática, mas plena de bonomia, expressão:
“Então, Tiago, que tal Tiago, tudo bem? Tudo bem, Tiago.”
Sem que eu lhe tivesse retorquido, é certo, mas o tipo dá de barato, sem estar longe da verdade, que eu lhe quisesse polidamente perguntar se também com ele estava tudo bem. Também ele, que tal, me deseja um bom dia de trabalho. De seguida, liga a um cliente e oiço:
“Então, fulano, que tal, fulano, tudo bem? Tudo bem, fulano.”
Com esta, eu, que havia acabado de me sentar, levanto-me para um café no bar do escritório.
Aí, os meninos discutem a arbitragem do fim de semana e as meninas a fantástica deslocação ao IKEA ou o bolsar nocturno do bebé. O sócio de outro departamento cruza-se comigo, pergunta se “está tudo fixe”, para parecer um gajo bacano, e deseja-me, pois claro está, um bom dia.
Mais precisamente, um bom-dia-de-trabalho.
Devo dizer, com toda a franqueza e sem querer ofender ninguém, que já não aguento estas simpatias anódinas. Se se afastassem com uma saudação simples, como fosse “tchau”, “passar bem”, “vai à merda, porco suíno”, mas não, têm de proferir mediocridades neutras como “tem um bom dia de trabalho”. Mas quem lhes meteu na cabeça que a minha concepção de um bom dia passa por um jorna de cumprimento íntegro dos meus deveres laborais? Porque não estar antes virado para um óptimo dia pessoal e um dia laboral, digamos, rigorosamente merdoso?
Depois de uns quantos e-mails e infrutíferas tentativas de pagamento de honorários que me fazem sentir o cobrador do fraque, munido deste amargo estado de espírito matinal, desço para fumar um cigarrito lá em baixo, com vista para o mar de beatas que jaz sobre o asfalto da casal ribeiro, largadas pelos anónimos drogados de escritório, meus semelhantes.
Aproveito, já agora e en passant, para comprar o jornal desportivo, na expectativa de uma uns momentos de descanso intelectual passados a ler crónicas imbecis sobre o complexo mundo da bola, no acolhedor sossego do WC.
Aguarda-me mais uma fila.
Uma rapariga brasileira compra cartões telefónicos e pergunta pelo plafond, não entende nada do que o empregado responde e são tanto os seus perplexos “oi?” que a fila cresce imparável atrás de mim. Com isto, é já meio dia. O rapaz imediatamente atrás da minha pessoa lança os mais vulgares impropérios, à moda do Caixodré.
“Mas que merda esta, dasse!”
Disfarço enquanto coço um olho, viro-me para o tipo, a ver o que se passa. Ele olha colérico para o telemóvel e tecla furiosamente, como se a sua intensa expressividade oral e gestual pudesse ter como consequência provável desencadear nos circuitos internos da geringonça um milagre da física. Como se lançasse uma faísca repentina que tornasse possível a almejada comunicação à distância para a qual o aparelho foi supostamente concebido.
“Foda-se, merda de telemóvel, ó c…!”
Toda a fila, sem mais nada para fazer, pelo menos enquanto a brasileirinha recém-imigrada prosseguia com os seus loquazes e grandiloquentes “oi???”, olhava de soslaio para o desesperado rapaz.
A brasileirinha finalmente entende alguma coisa deste Português sem vogais, larga o poiso e avança a fila.
Avançando consequentemente também ele um lugar, o petiz consegue apanhar uma réstia de rede disponível naquela cave de centro comercial. Mal é conseguida a ligação, o tom de voz repentinamente baixa e adocica.
“Estou, mãe? Mãe? — reverente e animado — Que saudades, mãe! Olhe, estou aqui perto, mãe! Há almoço para mim?”
Pronto, está tudo explicado: era fome, o pobrezinho.
Mas uma fila tem muito que se lhe diga, ou que se lhe escreva. Uma singela fila dá pano para mangas. Basta observar, em vez de simplesmente ver.
À minha frente, o sujeito, temporariamente ao serviço nas obras do escritório do quinto andar do edifício, trajes de rude trabalho braçal contrastantes com o fatinho completo dos escriturários que o rodeavam (trajes mas não só, pois que o odor também era característico de um tipo de labor de carácter mais intensivo), protestava com o preço dos bens que pretendia adquirir: A Bola, o Correio e um maço de Marboro Vermelho (assim mesmo, Marboro sem “l”):
“Cinco euros e dez”, informa o plácido empregado do quiosque.
“Cinco éros e dez????”
“Sim, amigo, cinco euros e dez.”
“Atão, mas a quantos éros está o tabaco e o jornal?”
“Ó amigo, o tabaco aumentou, agora está a três-quarenta-e-cinco”
“Três éros e quantos???”
Ai o c… Levemente desesperado com a espera, e sentindo que o empregado não estava a ter um bom-dia-de-trabalho, acometeu-se-me um raro gesto de solidariedade e fui em socorro do pobre do assalariado. Dirijo-me, cara a cara, para o honesto homem das cavernas e explico:
“Ó amigo, o tabaco está a três éros e quarenta e cinco ramazotes. Por isso é que a conta é de cinco éros e dez ramazotes”.
Vá lá que só o assaliariado percebeu a gracinha de burguês armado ao pingarelho. O trolha bem servido de musculatura não percebeu, mas pagou. Sem ressentimentos, espero que tenha passado um bom-dia-de-trabalho.
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