31 de outubro de 2008

Retalho de um conto

Um velho cavalo rumina, rodando as largas mandíbulas em círculos. O cavalo tem cara de panorama. Olha para o vazio, carrega consigo um olhar dir-se-ia sem fundo, parece preenchido de tudo o que não vê, como se os montes que o contemplam impregnassem aquele olhar equídeo do sentido da insignificância. Por um segundo, parece notar alguma coisa, fracção de tempo em que pára de mascar a erva fresca, mas logo, percebendo que era a mesma árvore de ontem bailando agora com a brisa, retoma o seu eterno afazer com o vagar que os seus dentes gastos exigem.

Por seu turno, Francisco Mendes pede um whisky duplo ao balcão do Dez. Essa é a medida que concede ao tempo até que algo aconteça. Infelizmente para Francisco Mendes, o tempo está-se nas tintas para o seu whisky, o Dez não é um diner de Los Angeles, nem ele é figurante de um filme de série B e, como tal, finda a bebida, nenhum jovem casal de ladrões de trazer por casa ameaçará a freguesia brandindo pistolas e gritando “Everybody be cool, this is a robbery!”, como, num aparente paradoxo, Francisco Mendes desejaria. Francisco Mendes chegou a chefe de contabilidade em esforçados vinte e cinco anos de carreira. Nada de novo se passará neste fim de tarde, à parte talvez mais uma dose dupla com que medir o tempo e mais um jogo europeu que será transmitido no ecrãs reluzentes do Dez.

O whisky, o balcão do Dez e o futebol são mundos desconhecidos para Amélia, rapariga na flor da idade, viçosa, morena e alta. Amélia, ela, não faz mais nada senão representar à risca o seu papel, sempre que algum leitor (e não são poucos) resolve ler o clássico do século XIX, ressuscitando-a. Quando tal acontece, segue o destino que o escritor lhe traçou: vive um amor proibido, engravida, retira-se em consequência para uma quinta nos arredores da cidade sob a vigilância de uma beata fanática, redime-se à custa do único padre que se comporta de acordo com os cânones, até que volta a morrer, do mesmo parto, para percorrer igual via sacra sempre que alguém volte a folhear o romance. Uma adaptação cinematográfica quebrou fugazmente a sua monotonia, mas, como é sabido, o formato audio-visual é efémero e, de qualquer modo, o filme agudiza, em vez de amenizar, a fama de devassa que carrega como uma cruz. Ninguém mudará a sua sorte, o autor finou-se há uns bom cem anos.

(Cont.)

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28 de outubro de 2008

E o Natal está quase aí ao virar da esquina...


Ainda não li, mas é como se já tivesse lido. Recomendo, sem medos. Este livro vai para o sapatinho de muitos amigos. Aguardo autógrafo, lá para Dezembro.

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26 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Máxima tardava a responder. Nunca o chegou a fazer. Ia abrir a boca e assim a teve de deixar ficar, suspensa pela expectativa. Sentiu que voava, num improvável salto a galope. De boca ainda aberta, saltou do banco, sem apoio, tentando agarrar-se a qualquer coisa, a sua mão não conseguindo melhor do que fechar-se no ar vazio. A boca sempre aberta, fechou os olhos com força, a mesma força que gostaria de usar para fechar os ouvidos, se ao menos Deus tivesse assim concedido ao homem mais essa vantagem competitiva. Tal serviria para calar a singular orquestra composta de inconcebíveis guinchos de pneumáticos e terríveis acelerações de motores pairando no vácuo. Seguiu-se um som surdo de uma pancada, o baque da sua própria fronte contra uma parede de vidro estilhaçando-se, seguido de um silvo crescente, o som do seu corpo deslizando com o impulso por entre as finas moléculas da atmosfera. Transformou-se pois num projéctil humano disparado para o vazio, de tal modo que naqueles instantes nada via para além de um túnel de luz ofuscante à sua frente, sem que lhe vislumbrasse fim. Naqueles intermináveis momentos voadores, sentiu-se, como nunca mais se sentiria, independente, feita de si mesma, incomensuravelmente distante de tudo.


Pausa. Vazio. E pausa. E vazio.

Algures, o ruído de metais retorcidos por uma pancada brutal conseguiu penetrar de novo na sua consciência.

Voltou a si deitada num cama húmida de urzes, olhando para o cadáver de um automóvel, rodas viradas para o firmamento que não cessavam de girar, fumos saindo de entranhas mecânicas quebradas. Em contraste com a visão dantesca, o que agora ouvia era apenas o gotejar tranquilo da chuva morna que se esvaía, como ela, no cómodo tapete de musgo e urzes a que tinha ido parar.

O terror imobilizava-a. Não lhe doía nada, ainda que sentisse o gosto doce do sangue que lhe descia do nariz até aos lábios por acção lenta da gravidade. Deixou-se ficar quieta, fazendo por crer que tudo aquilo era um sonho.

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20 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

“Ao menos quando ela chegar não se vai pôr com temores de ser vista por coscuvilheiros. Quando está receosa fica danada, faz-se difícil”, pensou.

Se é que ela viria. Henrique pensou se estava impaciente por que ela viesse ou porque não aparecesse.

Olhou para o seu relógio: pouco passava das sete, mas o breu era opaco. O Outono tinha chegado sem aviso.

“Dou-lhe mais um quarto de hora”, disse para si próprio, “depois disso vou para casa e ela que se amanhe com quem lhe faça outro filho, a começar pelo impotente do marido, e que sustente o que já por cá anda. De qualquer modo, começa a perder o viço”, num monólogo consigo mesmo.

O relógio da vila tinha acabado de soar as sete e um quarto e Henrique, determinado em cumprir a jura que se havia feito, rodava já a chave da ignição, quando lhe pareceu vislumbrar alguém aparecendo por detrás da esquina do edifício. Desligou o motor e apagou as luzes. Seria ela?

Ela viu-o e apressou o passo na direcção do automóvel, rodando o pescoço para trás de quando em vez, à cata de testemunhas inoportunas. Não vendo ninguém, chegou-se com cuidados ao grande Mercedes preto.

Henrique saiu e abriu a porta do lado, um tudo-nada antes de tempo, precavendo Máxima da impaciência que a espera tinha provocado ao amante. O lavrador não estava habituado a depender dos outros.

Já Máxima, mãe solteira na época em que elas não existiam senão por obra do Demo, dependia totalmente dos outros, particularmente do pai do seu filho.

Dependia de Henrique Redondo e de quem lhe calhasse por sorte ao caminho: a propósito, Máxima não podia revelar ao seu amante que a demora devera-se aos avanços atrapalhados do director da fábrica a que ela fingia ir resistindo, num jogo do gato e do rato em que a presa é, evidentemente, o suposto caçador.

Ao longe, no ponto onde o caminho de terra se unia à estrada municipal remendada de asfalto, passou um vulto. Os amantes esperaram em silêncio, ansiando que o sujeito não notasse o carro camuflado sob a copa baixa dos pinheiros mansos. O vulto entrou no seu carro, estacionado no parque da fábrica, ligou o motor e fez-se à estrada.

“Quem era aquele?”, inquiriu secamente Henrique.

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18 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Agora é este o cenário: um shopping center de subúrbio com quarenta anos.

Descontando a alcatifa que antes havia galgado e serpenteado os corredores escuros, que foi arrancada para dar lugar a mármore (naturalmente falso), o demais preparo ficou como sempre esteve:

Dois andares de pequenas lojas prestando pequenos serviços, isto é, acessórios de telemóveis, venda de electrodomésticos, videoclubes, bijuterias e bugigangas várias, confecções e roupas berrantes, iluminação para o lar, tabacarias, lavandarias, um cabeleireiro uni-sexo que faz implantes de tranças artificiais ou naturais e até importadas do estrangeiro, restauro de hardware e outras informáticas, a capela de uma igreja baptista, fotógrafos para casamentos e baptizados, decorações para o lar, acolchoados, retrosarias, afins, e por aí adiante.

Cá em baixo, junto à saída das traseiras, um snack-bar discreto neste shopping sumido, a que um pato-bravo, num raro momento de inspiração premonitória, baptizou de “Shopping Babilónia”.

De facto, frequenta esta portuguesa torre de Babel, feita de dois-pisos-dois de galerias comerciais, uma amálgama de gentios de todas as raças, credos, origens, etnias, disposições e feitios que na Amadora se podem encontrar: trabalhadores honestos e, modo geral, bastante feios. "Esta gente", parafraseando um conhecido colunista de um jornal diário, vinga-se do dia a dia o melhor que pode refastelando-se em cadeiras de metal consumidas, atarrachadas por parafusos carcomidos, a mesas de alumínio oxidadas.

No círculo que estas mesas formam formam-se, por seu turno, comunidades (de imigrantes) que se espalham (mornamente cavaqueando) naquela imitação de esplanada

(com tanta descontração como se eles estivessem na sua terra, pensa de si para si Sílvio, contendo silenciosamente, também ele o melhor que pode, o seu desprezo).

É, pois, neste bar decrépito que elas (as freguesas) acomodam os seus rabos rotundos para observar a quantidade exacta de sacos de compras que carregam as demais

(importa sobremaneira, é bom de notar, instalar-se nas cadeiras frias com o máximo de sacos de compras possível, sinal de sucesso no sonho lusitano),

há que fingir conversar com as vizinhas (disfarçando com tragos rápidos de bicas mornas) para poder dialogar, acima de tudo e porque é isso que verdadeiramente conta, com os sacos de compras das outras.

É também na esplanada a céu fechado, que eles (os fregueses) fumam os seus cigarros nacionais (numa uniformidade de gosto que previne o cravanço) e tragam em goles gulosos cervejas de medida comedida (as grandes perdem rapidamente frescura).

Eles estão sentados no ângulo oposto ao balcão, trincando rissóis (quando sentem muita larica) e cuspindo cascas de tremoço (quando apenas a querem distrair).

Contam, nas gargalhadas que enfeitam a conversa reservada a machos, anedotas sobre mulheres. Se uma senhora se aproxima , quase sempre se calam. Ocasionalmente, dirigem-lhes a palavra (o que sucede apenas quando as qualidades sedutoras são unanimemente observáveis pela sabedoria barata daquela horda de alarves).

Estes piropos são lançados do canto onde eles, os fregueses, teimosamente persistem em se plantar:

Tal faz-se junto da penumbra que cerca a casa de banho das senhoras, à boca do trajecto que as senhoras têm de percorrer em passo rápido,

Para escapar aos olhares sôfregos dos senhores.

É, pois, neste bar, chutado para canto de um shopping remoto, que Sílvio, que nunca teve uma mãe (pelo menos que fosse digna da enormidade opressiva da palavra: “mãe”), serve com indiferença freguesas e fregueses.

Sílvio gostaria de passar à acção.

Espancar, talvez até à morte, as pessoas indiferentes. Para Sílvio, há sujeitos que não contam enquanto tal.

Infelizmente para o quadro de valores que foi interiorizando na ausência de superior aconselhamento (materno ou outro), Sílvio sente enorme frustração por ninguém tomar as rédeas.

Sílvio gostaria, é evidente, de fazer justiça pelas próprias mãos mas, não sem hedionda vergonha, resigna-se a esperar que uma mirífica milícia de jovens suburbanos trate do assunto

(Sílvio acredita ainda menos no Governo ou nos políticos, que deram provas dadas que jamais deram, dão ou darão conta do recado).

Espera que uns jovens heróis sujem as mãos por ele, para que as suas possam permanecer limpas.

E assim vai, com a ira que só a cobardia consegue suster, servindo bicas mornas e cervejas de medida comedida àquela gente suja.

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16 de outubro de 2008

O elogio do inútil

Escreveram-me:

"O inútil é o subtrair-se à ditadura das finalidades que acabam por nos desviar do viver autêntico.

Revemo-nos no versos que Alexandre O'Neill escreveu em "Adeus Português"".

«... nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver»

Eis a prova de que a minha mãe é muito melhor do que a mãe da minha vizinha.

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13 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Estou equipado com um olhar diferente, hoje em dia. Infelizmente, não se limita, como antes, a raiar a superfície das coisas. Prescruta mais fundo e cai no abismo do horizonte. Esta eficiência é muitas vezes desconfortável, troca-me os passos, cerra-me os olhos, perante a luz tanto quanto perante a escuridão.

Ponho-me no lugar da Velha e tento pensar na quantidade de memórias que terão restado de tudo o que o seu olhar registou. Penso na sua força e tremo. Tenho tantas fotografias guardadas atrás dos meus olhos e mantenho-as numa desarrumação caótica, estão desligadas, lutam entre si tentando ocupar o espaço da outra, numa luta inglória para tomar o lugar que lhes pertence.

Trabalho arduamente nesta tarefa metódica, de dar sentido àquilo que vejo. Por isso registo tudo, faço por notar a mais pequena variação de luz que cada momento cria, tento conter cada pedaço de tempo bem atado dentro de si mesmo – como agora, enquanto a observo da cama, está sentada à luz ténue do candeeiro de secretária que revela apenas uma das faces do rosto contra a escuridão e ilumina o pó que decora a lombada do livro sobre o qual se debruça, o olhar fixo no seu mundo de fantasia.

Está imóvel, a tal ponto imóvel que a sua respiração tranquila chega para transformar o que seria uma fotografia numa cena em tímido movimento, digna de um filme de Bergman. Enquanto a observo enfeitiçado, os lábios carnudos firmemente cerrados, a fronte enrugada pela concentração, todas as outras imagens se desvanecem no escuro da noite.

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As segundas, de manhã

Sabes como é acordar de um sonho,
Certo de que voas
E que um amigo, que aliás
Jamais conheceste,
Voltou.

E animas-te com a ânsia, breve,
De te fazeres à estrada e de com ele
Sentires nada.

Ou ao menos domar o volante e arrastares contigo
Aqueles que amas
E sentires tudo.

Sabes como é,
Enquanto te escanhoas e contemplas
As tuas sobras no espelho,
Fazes as contas

Ao percentil dos dias,
Dos que transportas no dorso, que
Gastaste em assinar o teu nome,

E o dia começa enquanto conduzes
Dando prioridade
Aos que te conduzem,

Passada aquela fresta de hora, o momento
Solitário,
O dia ressuscita e ultrapassa-te, ele é
Aquele carro,
E mais outro
E mais outro carro.

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