26 de fevereiro de 2009

as words do wordaholic


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19 de fevereiro de 2009

Retalho

Uma nuvem manhosa surpreendeu-os no caminho, deixando que o sol os vigiasse por detrás da espessura, a espaços. O cavalo de ferro relinchava, as rodas queixavam-se dando golpes como coices, como se de súbito os seus mecanismos tivessem produzido um artificial instinto de sobrevivência e se quisesse libertar das rédeas do motard inconsciente que o lançava a toda a brida, disparada como um projéctil furioso pelas estradas de Monsanto. Quente, imóvel, sonolento no bafo, o bosque, revelado às claras, apavorava-a, como se a luz do dia concretizasse os pinheiros, eucaliptos, amendoeiras e demais obstáculos verticais que, na obscuridade, ela evitava com imprudência ágil, obedecendo ao pulso firme do dono. O motard conduzia-o por uma curva longa, o dorso quase raspando o asfalto, e enfiava-a agora pela descida até ao grande viaduto. Não oiço nada, pensava, só o cantar agudo dos pneus, não sinto nada, só a vibração dos metais, em ziguezague serpenteio entre veículos, carro após carro após carro, o vento esbofeteia-me a cara, o peito comprimido contra o ar feito uma muralha, o rosto é plasticina contorcida, vejo o meu caminho, encolho os traços que pintam as bermas da estrada e transformo-os numa linha só, carros e camiões, navego-os como uma bala, pneus, ligas leves, os espelhos revelam sombras de rostos assustados deixados para trás, desvio-me desses elefantes com rodados longos no lugar de patas que me passam ao lado, galgo esta curva e vou galgar a próxima, cada vez mais depressa, o motor quente quer voar, o meu cavalo de ferro, borracha e combustível dá um salto levantando a dianteira, o guincho, a borracha queimada entra-me nas narinas, é uma droga, é uma doga que acelera pulsações, o coração bombeia fluidos, sangue e seiva e adrenalina, ritmo sincopado com pistões e válvulas, um coração nervoso que bombeia e bombeia e bombeia, e passo este gajo e agora o próximo, e passo o vento e passo os pássaros e tubarões prateados e cães atravessados no caminho, e as figuras e os rostos e os corpos, e assim não sinto mais nada, e nesta vertigem não penso em mais nada, e nesta vertigem não penso no que ficou por te dizer, que devia tê-lo dito mas estava bêbado da tua beleza, que a minha pele tem memória das tuas mãos que nunca me tocaram, está impregnada do perfume que só ao de leve senti, que o meu tacto sente as tuas vibrações, que as tuas conquistas são as minhas derrotas, cada encontro com a Lisboa em penumbra está marcada pelos teus restos e rastos, por tua causa amo agora Lisboa como quem ama uma mulher de rosto desfigurado, tudo em mim é compostura, compostura, compostura e medo, devia ter-to dito, é um crime não to ter dito, é um crime não te ter falado dos diamantes que nadam nos teus olhos, esses olhos pardos que em plena ausência me atormentarão todos os meus dias, devia ter-te dito que, longe de ti, tu e os teus olhos cinzentos serão para sempre as testemunhas oculares dos dias iguais que se seguirão, um domingo único e solitário, sei-o de antemão, tu e os teus olhos atestarão que as mil ruas de Lisboa que percorrerei serão uma única ruína, os teus olhos ausentes confirmarão que passarei os meus dias lendo páginas rançosas de livros por escrever, rumo a um final previsível que não será feliz, em tudo o que importa tento não pensar por entre a vertigem do galope deste fiel cavalo de metais, borrachas e gasolinas, é inútil, tenho de parar. A fera de ferro calou-se. E agora? O eco deste silêncio pesado rebatido pelos muros e ruínas de Lisboa rompe-me os tímpanos. A minha vida esvai-se, como o óleo que pinga do escape. E agora? Devia ter-to dito.

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7 de fevereiro de 2009

Retalho

Foto saqueada daqui




Tanto sangue? Mas o que aconteceu?

Voltou a esticar a mão para o peito do corpo deitado a seu lado, e não sentiu nada. Reflexamente, o seu próprio coração pareceu deixar de bater.
Henrique estava inconsciente, pensou. Voltou a chamar por ele, num sussurro, as suas cordas vocais engasgadas pelo horror. Forçou-as até à dor e saiu-lhe (quase audível) o nome do lavrador.

Não lhe respondeu. Permanecia inconsciente. Permanecia ferido. “O que é que eu faço, o que é que eu faço, meu Deus?”, perguntou-se.

Gritou, tão alto quanto pôde, por socorro. Esperou uns momentos e voltou a gritar. Apenas as gotas de água afagando a cama de folhas mortas lhe respondiam.

Conseguiu num esforço desmesurado pôr-se de pé, contrariando ardores afiados que lhe prendiam as articulações e agulhas pontiagudas que lhe inflamavam o cérebro. A tontura quase a levou de novo ao solo.

Endireitou-se e olhou em frente para o tronco claro dos grandes choupos, únicas testemunhas vivas do seu pânico. É claro que não se atrevia a olhar de novo para o corpo do amante. Queria conservá-lo naquele estado de inconsciência: temia que mais um olhar, ainda que de relance, confirmasse o pior. Ou levasse ao pior.

De pescoço inclinado para as copas altas dos choupos, tacteou procurando, sem olhar, os fósforos com que Henrique acendia os seus cigarros e que sabia que trazia sempre no bolso das calças.

“É tudo medonho quando se olha no escuro”, pensou. “Quando puder ver direito, verei os seus olhos abertos – nada se passou, tudo está bem.” Mas, no fundo, temia abrir os olhos.

Um tímido raio de luz enganou a escuridão quando Máxima riscou os fósforos, protegidos da chuva pela flanela grossa dos bolsos de Henrique.

A luz envolveu o espectro inteiro no curto momento em que o processo químico da queima atingiu o seu expoente. Aí os choupos confirmaram, com o sangue-frio feito de seiva, que, de Henrique, restava apenas um resto de corpo. Máxima, com o sangue-quente feito de ilusão apaixonada, abrigou-se de novo no breu que se seguiu ao apagar do pau de fósforo. Máxima entrincheirou-se na escuridão, sentindo-se protegida pelo velo, dela hesitava em sair.

“Não, não é possível”. Decerto não teria visto bem àquela luz tímida. Henrique estaria apenas desmaiado.

Mas se continuasse assim, morreria mesmo, esvaindo-se lentamente em sangue como o suíno na matança.

Uma voz interior, a mesma que contra a sua vontade havia antes balbuciado o nome de baptismo do amante, dizia-lhe, no entanto: “Por favor, aceita, aconteceu uma desgraça. Os desígnios de Deus são insondáveis, seja feita a Sua vontade.”

“Cala-te!”, gritou Máxima, e desta vez de viva voz.

“O que fazer”, disse baixinho de si para si. “O que fazer? Não é verdade, não pode ser verdade, tenho de buscar socorro antes que seja tarde demais”, sussurrava, sentindo calafrios.

“Se ao menos aparecesse alguém. Se ao menos algum pastor viesse atrasado da recolha”. Mas Máxima pensou que um pastor não lhe serviria, mesmo que viesse, o que Henrique precisava era de um médico. Tinha de ir em busca de um, precisava desesperadamente de encontrar nestas paragens uma casa com um telefone que lhe trouxesse um médico, e a estas horas, e imediatamente.

Mas e o que fazer, deixar Henrique ali sozinho, inconsciente, à beira da morte? E se o homem acorda apenas para se aperceber que vai morrer sozinho? Melhor será fazer-lhe companhia, tranquilizá-lo, chamar por ele, despertá-lo?

Momentos intermináveis passaram, Máxima aninhava-se, como uma criança, num limbo de indecisão. Até que, num assomo de consciência adulta, Máxima percebeu que tinha de ser ela a pôr mãos à obra. Agora que Henrique jazia ao seu lado, não restava ninguém que pudesse decidir por ela.

Decidiu-se, pois, beijou a testa – singularmente gelada - do amante e trepou o monte até à estrada. Não foi difícil dar com o caminho, bastou-lhe seguir as pegadas de metal e borracha dos destroços. Dirigiu-se para norte, dando costas à Estrela, em sentido contrário ao rastro de entranhas metálicas que o Mercedes tinha antes cuspido. Não se lembrava de ter visto sequer um abrigo de pastor, quanto mais uma casa com cabeça, tronco e membros e a porcaria de um telefone que lhe permitisse chamar uma ambulância.

Mas Máxima era impelida pelo desespero, caminhando em duelo quixotesco contra todas as probabilidades. Naquelas circunstâncias, não havia outra alternativa suportável: Máxima não esperava menos do que um milagre.

E lá ia ela a passo ligeiro, tanto quanto a teimosia forçava as pernas entorpecidas.

Tentando fazer ouvidos moucos às vozes que a perseguiam.

Tapou os ouvidos com força, a tal ponto que sentiu os lóbulos a arder. Debalde, porque era da sua mente que aqueles sons medonhos lhe chegavam, não das copas escuras dos castanheiros que agora lhe ensombravam a caminhada: era o seu cérebro traiçoeiro que produzia os gemidos de Henrique chamando por si. Teria ele acordado e ela o largado abandonado nas silvas, o sangue diluindo-se na morrinha?

Fazia por não os ouvir, do mesmo modo que o pastor faz ouvidos moucos ao grunhir medonho da ovelha predilecta que foi abatida para a ceia de Natal. Era preciso não dar ouvidos ao desespero de Henrique deixado para trás, de outro modo não haveria para este remédio. Ainda assim, cedia o passo quando o cérebro lhe pintava uma imagem mais nítida de Henrique despertando e sofrendo eremita.

Quando se apercebeu das suas hesitações, acelerou o passo, lutando contra a sua imaginação. Era urgente ter uma fé absolutamente cega.

Estugou o passo, mas, mal tinha silenciado, à força de uma teimosia de paquiderme, os bramidos informes do amante moribundo, desenhou-se no seu pensamento uma imagem, nítida, precisa, acutilante, imóvel.

A memória tinha, vencendo facilmente a sua vontade, revelado, com precisão de bisturi, uma fotografia, iluminada à luz do fósforo que há momentos tinha aceso, dos lábios de Henrique: gretados, secos, pálidos, pardacentos.

Incolores.

Nesse preciso momento, discerniu pela primeira vez com uma clarividência de assombro: é assim, a morte.

Sentiu-se só, Máxima, enquanto percorria mais uma centena de metros da Estrada municipal sem avistar nem uma choupana. Sentia-se só, Máxima, enquanto a sua mente imaginava a respiração moribunda do Henrique deixado para trás, querendo, à beira do juízo final, sussurrar-lhe, por fim, palavras de ternura e de arrependimento.

Forçou-se a recordar a voz ríspida e cortante do seu amante, já tão vaga na reminiscência, apesar do pouco tempo que passara desde o último momento em que a ouvira. Forçou-se a ouvi-la, a voz seca do seu amante. “Enquanto a ouvir”, pensou Máxima, “não estou sozinha, enquanto em mim o ouvir. Há um fogo que a sua voz ateia, e essa luz está aqui, comigo, enquanto caminho”. Essa luz trazia-lhe vida, estava grata a Deus pela vida calorosa que essa luz lhe trazia. Havia mais vida nesta luz do que em toda a sua existência.

Seguia o seu passo, mais uma centena de metros, sem avistar vivalma, mas sonâmbula, perseguindo o improvável em que voltava a ter fé. A luz abstracta que levava consigo protegia-a contra a figura concreta que tinha deixado para trás: um corpo inerte, com todos os sinais de um cadáver.

A violência da palavra “cadáver” que Máxima sentiu a pairar por sobre si como uma bigorna moral prestes a esmagá-la fê-la voltar a si. “Cadáver”.

De repente, numa espiral de vertigens, mais do que sozinha, sentiu-se fora de si mesma. Sentiu que se observava, crescia grotescamente para dimensões transcendentes, expandindo-se até que flutuava muito acima do seu corpo e da matéria que a rodeava. Viu-se deambulando, sem rumo, em busca de coisa nenhuma. Nada poderia evitar o que acontecera. A voz não vinha de Henrique, vinha de dentro do seu pensamento, não havia candeia que lhe alumiasse o caminho, apenas trevas cercando-a.

Isto não vai dar a lado algum. E se encontrar alguém, o que já de si não é provável, o que lhe digo? Que tive um acidente com um sujeito às oito da noite numa estrada perdida da Beira e que o tipo está moribundo (ou estará antes que lá cheguem)? Perguntar-me-ão quem sou e o que faço. E outras perguntas mais, que antes que acabem já o Henrique terá ido desta para melhor.

E que devo responder? Não lhes direi nada, não tenho nada que responder.

Ouviu vozes à distância. Quase gritou pelo socorro por que tanto ansiara. Calou-se no último instante.

Sem inspiração que me servisse de mote, fui à caça dela num baú cheio de retalhos velhos. Saiu-me esta espécie de continuação, sei lá de onde isto me vem. Ainda estou, e estarei, para descobrir (e é esta tentativa o que de mais estimulante representa o acto solitário da escrita para um tipo, como eu, sem quaisquer ambições literárias senão as do seu mero e tendencialmente prazenteiro exercício) porque carga de água a um gajo bem disposto, com sentido de humor q.b. e com um tranquilo sentido de relatividade sobre a importância de todas as cousas, lhe saem estas coisas desconcertantes (e, à segunda leitura, um tudo quanto deprimentes) sempre que lhe dá a veneta para ficcionar. É que não sei mesmo como isto me sai. E portanto, cara Ângela, depois de muito porfiar, lamento não satisfazer a tua curiosidade, pois se nem eu satisfaço a minha. Sei lá eu anotar de mim seis particularidades. É questão de questionar o o eléctrico amarelo, de sua graça númaro 28, pode ser que o preguiçoso e plúmbeo paquiderme guinchante veja a luz ao fundo do túnel. Eu, confesso, ainda não percebi a linguagem do simpático monstro rolante.

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2 de fevereiro de 2009

Retalho



Abandono o pátio a uma hora insolitamente matutina, o selim da bicicleta cintila de geada. Fecho bem o capuz com o cachecol, exalo fumo, esfrego mãos e, ala, pedalo pelo asfalto prateado de orvalho. Rola e rola a roda, a corrente ruge de ferrugem fazendo-me companhia pelas ruas ocas. A Cerca Moura perdeu o ponto de fuga, este Tejo abraçou-a numa nuvem grossa e cinzenta, um hipopótamo de vapor chegando-se a ela como se lhe portasse um recado de Poseidon. Nela mergulho e, como São Vicente e os seus corvos, também eu desapareço. Desço às cegas a colina, os trilhos do 28 servindo-me de cão-guia. Muito para recordar, muito cedo para sentir. Lisboa, assim vestida em brumas, é furtiva como uma amante. O ar está gelado e com os olhos em lágrimas de vento busco algum indício. Para lá do velo, vislumbro um varandim, a que se segue outro, aqui uma portada se abre, uma janela aguarda que lhe subam o pano, para que a peça deste dia de Janeiro se encene. A vitrina de um café ao pé da Sé mostra a primeira fornada, mas não só. Nela se encosta o meu reflexo: conturbado, revolto, sombrio. Eis os despojos da noite sem nome, aquela que agora começo a recordar com o fôlego suspenso, um novelo de arame na garganta, a face rubra de vergonha. E enquanto o nevoeiro levanta desnudando a cidade dos seus pudores – vergonha! –, outro vulto se fixa na vitrine: comeria com os olhos o produto fumegante da pastelaria ou sondaria no meu olhar a marca do delito?

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