28 de agosto de 2009

Um

“UM! “, berrava o gordo, “DOIS!”, pesado, “TRÊS”, rouco, como um cabo passando a revista, “QUATRO”, espantado como se nunca tivesse posto a vista em cima do carro coberto de poeira, “CINCO!”, lívido por lhe teimarem em ocupar o território de macadame, “SEIS!”, o gordo, descendo a rua à beira do passeio, contava, indignado, mais um paquiderme de aço estacionado no passeio, “Sete…” e a repetida competência das suas contas de somar (que não a monotonia da auto-atribuída tarefa), já lhe afrouxava o timbre, “oito…”, quase derrotado por tanta aritmética, “nove” e quem se desse ao trabalho de o observar não saberia se fazia contas aos invasores estacionados naquela rua do bairro da Ajuda ou se os próprios passos arrastando a camisa azul que se desfraldava por sobre os jeans que, assim tão largos, o não faziam mais novo, mas nem por isso deixava de, mais tímida mas ainda assim decidamente, fazer saber à vizinhança que aquele BMW preto reluzente parqueado em frente ao vinte e oito da calçada era para ele o usurpador número “nove”, mas esmorecia já, e baralhava-se, e ao fiat que se lhe seguia nomearia, talvez só para variar, “cinquenta e um!”, não se dera o acaso de um sujeito, anonimamente protegido pela s alturas de um terceiro andar com marquise, gritar, talvez só para fazer pirraça ao tolinho anafado, precisamente, lá está, “cinquenta e um!”, por acasos que a ciência estatística declararia curiosas, mas pouco impressionantes, dada a irrelevância da amostra, pelo que o gordo retomou o fio à meada, e, de orgulho ferido, mirou com inusitado introspecção analítica o fiat (croma azul matriculado nos idos de noventa e oito, para quem cuide de detalhes estatísticos), e solenemente, bradou, como se estivesse sob juramento de bandeira, “DEZ!!!”, em vez de cinquenta e um, como esteve para proferir e como o sujeito coberto de anonimato de marquise decerto pretendia, e por isso mesmo, só por pirraça para o seu amado inimigo das alturas, o não fez. Eis senão quando o gordo de camisa hasteada aos ventos, já se preparando para, com ânimo recuperado, etiquetar o intruso citroën saxo branco (este pouco reluzente) de “ONZE!”, ao mesmo passo que o sujeito elevadamente anónimo se aprestava para reincidir num destemido e por fim certeiramente baralhante “CINQUENTA E DOIS!!”, o inesperado aconteceu, de tal modo inesperado que deu tréguas àquela batalha combatida por armas de arremesso construídas em material numérico absurdo, de molde que o gordo desfraldado e o anónimo voador se calaram quando, surpreendidos, observaram que por eles passava um louco, sim, um louco, equipado a rigor de louco, portando calças negras tão impermeáveis que se diriam feitas de plástico, um colete negro acetinado, decorado com incandescentes (pelo menos a contra-luz) reflectores verdes, um almeida-louco, portanto, que corria à brida toda a rua abaixo, sem reparar, quanto mais colher, o caixote-do-lixo número um, dois, três ,quatro e por aí seguiria uma conta de somar, houvesse mais caixotes-do-lixo naquela curta rua da Ajuda e houvesse um tolinho que os contasse. O gordo, curioso, parou de contabilizar os efectivos do exército invasor e, tomado de súbitas ânsias, foi em penoso encalço do almeida-louco, ao mesmo passo que o vizinho das alturas se aprestava para sair do armário de varandae a toda a brida descia à terra pelas escadas escuras de madeira carunchosa gasta por tantas solas, e todos se encontraram, num encontro estatiscamente quase impossível, não fora a irrelevância daquele universo estatístico de um trio improvável, descendo a rua, a passo de chita, o almeida liderando, o gordo perseguindo, o aéreo completando. Até que, ao cabo da curta artéria daquele bairro da Ajuda, o trio estacou, cortado o passo por uma amarela fita reluzente, impregnada de uns pós-modernos dizeres: “Polícia, não trespassar”.

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