5 de março de 2008

Faça-se a tua vontade, ó-quase-adolescente

A sua auto-estima estava de rastos.

Tinha vergonha da sua cor. Da sua forma. Do seu gosto.

Sentia-se uma fruta feia. Ridícula.

Se, num acesso de loucura exibicionista, resolvesse despir a sua áspera casca de papa-formigas, não teria melhor para mostrar do que a sua carne flácida, pálida e gorda. Num concurso de beleza horto-frutícola, ganharia de caras o último lugar.

Era uma fruta tão indigesta que só a comiam depois de a meterem em lume brando. Um fruto assim, que precise de ser cozinhado para que, a custo, o deglutam, só ele e o marmelo. Mas este, transformado em doce, faz as delícias da criançada. E mais. Um dia, lá em casa, comentando uma cena tórrida de uma telenovela, os pais disseram aos filhos que fossem brincar para o quarto, que as crianças não podiam ver aquela pouca-vergonha. Que "grande marmelada", exclamaram indignados. Em suma, até do agreste marmelo sentia ciúmes.

Como toda a regra tem uma excepção que a confirma, diziam-lhe frutas piedosas que ele era muito famoso e apreciado num país quente e distante. Ainda que essa história fosse verdadeira, não lhe servia de consolo. Parece que lá os homens eram todos bigodudos, pançudos e com escassos hábitos de higiene, bebiam tequila como se fosse água e comiam chili como se fosse chocolate. Pudera que os tais mariachis também gostassem dele, se eram sujeitos com tamanha falta de chá.

Enfim, sentia-se só.

Estava farto da sua condição de abacate.

Porque não tinha nascido uma pêra suculenta, um pêssego sumarento, uma laranja refrescante, uma maçã tentadora? Enfim, um modesto tremoço que fosse, para fazer as vezes de marisco. Agora um abacate?

Ignorado por todos e cansado da vida, jazia apodrecendo na fruteira, numa esperança infrutífera de que o comessem.

Mas, num dia miraculoso, um cozinheiro imaginativo e meio chanfrado, tão extravagante como um ratinho francês famoso, pegou no pobre furto e resolveu juntá-lo a umas frutinhas elegantes e coloridas. O cozinheiro acabava de inventar mousse de abacate com frutos silvestres.

Ainda que estranhasse o arrojo do cozinheiro maluco, naquele momento sentiu-se o alimento mais feliz do mundo, adornado que estava com aquelas pequenas frutinhas berrantes e espampanantes. Inchou de orgulho.

E, enquanto o cozinheiro o desfazia no passe-vite, o raciocínio já um tanto esfacelado, pensou que a vida afinal valia a pena: num último suspiro liquefeito, o abacate por uma vez não desejou ter nascido outra fruta.

Nem sequer uma manga. Essa que fazia tão feliz uma criança gulosa, os beiços molhados pelo sumo pegajoso.

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