27 de março de 2009

Máxima

Mal toma consciência de que a chamam, Máxima deixa o pinheiro para trás e desata a correr com ímpeto de pavor. A mata é espessa e Máxima pouco enxerga naquela neblina, arranha-se por silvas, azevinhos e giestas, desvia-se de pinheiros, carvalhos e vidoeiros, tropeça em calhaus de quartzo, escorrega em camadas de caruma, ouve (ou pensa ouvir) o bater das asas de uns corvos tomados do mesmo pânico, Máxima é um animal acossado numa fuga que vale a vida. Debalde: a voz cava teima em fazer-se ouvir: Máxima, Máxima!

Não olha para trás, continua a correr sem destino, bem sabe que as forças lhe vão acabar, os pulmões são foles furados, as pernas bigornas, o cabelo é vime que lhe atrapalha os olhos, o pescoço uma camurça húmida de transpiração e a voz, sempre a voz, sopra-lhe nos ouvidos um bafo quente: Máxima, Máxima.

Sente uma bofetada no rosto e pára, estaca sem que o tivesse ordenado aos membros. A cara arde-lhe como uma febre. O nevoeiro dissipa-se e Máxima apercebe-se que não se encontra em bosque algum, mas deitada numa cama, a sua cama.

“Máxima, Máxima!! O que tens?”

“Nada. Não tenho nada.”

(Cont.)

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25 de março de 2009

O Profeta volta à terra


Lisboa, 30 de Julho.

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12 de março de 2009

Máxima

Foto saqueada, uma vez mais, daqui. Este retalho é continuação deste retalho.





À luz baça da alvorada que se anunciava (como era possível ter passado tanto tempo) não tinha pistas para discernir onde se encontrava. A paisagem não lhe era familiar, ela que tantas vezes tinha percorrido aquela estrada, a mesma que tinha traçado, em marcha inversa, com o seu amante, antes do momento fatídico que alterararia a sua vida para sempre. Os castanheiros e rochedos graníticos tinham desaparecido por artes mágicas e Máxima, à sua volta e no nevoeiro que repentinamente tinha caído, mal conseguia enxergar um palmo à frente do nariz. As vozes, cavas e indistintas como o rosnar de um mastim, aproximavam-se, sem que Máxima se apercebesse do que diziam. Instintivamente, escondeu-se por detrás de uns pinheiros. Encolheu-se o mais que pôde, aterrorizada, ela que (apercebia-se agora) durante tanto tempo deambulara sem rumo certo, perdendo-se no desespero. As vozes estavam cada vez mais perto. Tremeu da cabeça aos pés: alguma coisa lhe dizia que não devia revelar-se aos sujeitos que se aproximavam, que a única coisa que importava era que eles não soubessem de que ela ali estava e o que lhe tinha acontecido. Nem que a apatia representasse a morte certa de Henrique. Rezou, Máxima, sem abrir os lábios, rogou a Deus que os caminhantes passassem do outro lado da estrada e não a notassem. De novo se sentiu a criança que fora, fazendo tudo para se fundir com o pinheiro. As vozes chegavam quase à sua beira, nem assim Máxima entendia o que diziam. Um suor frio percorreu-lhe todo o comprimento da coluna. Cada vez mais perto, Máxima rezando Avé-Marias. O nevoeiro fechava-se em si mesmo, enrolava-se num novelo de algodão espesso, tosco, agreste, que a sufocava. As vozes mais intensas.

As vozes? A voz. Aqueles eram sons de uma só alma. Um monólogo. Um chamamento. A princípio, não quis acreditar. Mas a voz rouca estava já demasiado próxima para que Máxima pudesse recusar ouvir o que dizia.

“Máxima!”. “Máxima!”.




to be continued.

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2 de março de 2009

Retalho

Quarenta anos tinham passado desde que ali arribara e Joaquim teimava em não morrer de amores por Lisboa. Isto é lá lugar para namoros, era a resposta que Amália aturava do estafermo do marido sempre que lhe pedia para a levar a arejar. É que da cidade Joaquim pouco mais conhecia do que os nomes das ruas que a furgonete atravessava pachorrenta nas madrugadas sonâmbulas, da casa nos arrabaldes até ao mercado, junto ao Tejo. Mas ali sim, sentia-se em casa, como que num romaria virtual às suas origens. Se algum amigo lho perguntasse, não saberia nunca explicá-lo, que era homem de escasso vocabulário e pouco dado às subtilezas da metafísica (e, de qualquer modo, era sujeito de poucos amigos e nenhum deles sequer particularmente curioso, quanto mais dado às mariquices da especulação filosófica), mas sentia-o, isso sem dúvida, pois que, longe de ser sentimental, não deixava de ter vindo ao mundo provido da sensibilidade própria de quem nasce orgulhosamente campónio: para ele, nada como os víveres preparados pelas mãos instruídas de mulheres fortes, carrinhos de mão onde um mundo inteiro cabia, oleados deixando entrever um repolho aqui, um molho de cebolas ali, um cesto de pão fumegante abrindo apetites, o odor azedo de queijos cortados à navalha por dedos sujos de trabalho, chegava mesmo a comover-se com o vôo dos sacos de plástico flutuando a meia altura no mercado, pareciam-lhe, perdoe-se-lhe a rudeza da imagem, aves de rapina sustentadas no ar quente, aquecido a fritos, cozeduras e sudações laborais. Gostava do perfume do pé-de-salsa, do ruído dos jornais da véspera embrulhando os jaquinzinhos, sorria dos resmungos do louco residente, compartilhava as gargalhadas do talhante, compadecia-se, com sobranceria máscula, das inocentes zaragatas das comadres peixeiras, invejava a destre cantilena fadista dos ciganos que protestavam contra a infame prepotência do fiscal que lhes passava mais uma multa pela ausência de licença, encantava-se com os desenhos das escamas do peixe debulhado decorando de neve salgada o pavimento do recinto, enternecia-se com o amuo das crianças arrastadas pelas mães-freguesas, participava na tagarelice das velhotas da hortaliça, pilhava com parcimónia os escaparates das azeitonas gordas, galhofava dos pimentos convidando ao deboche, dialogava com os olhos redondos do besugo perguntando ao que tinha vindo, identificava-se com o coração mole da couve-flor, rebatia argumentos com peritos de trazer por casa sobre os mistérios da maturidade do melão, excitava-se, enfim, com o alvoroço permanente daquela bolsa de valores à escala humana. Até que uns anjos vestidos de bata e munidos de amoníaco esterilizavam a grande loja e tudo permanecia na obscuridade até à próxima alvorada. Mas até à hora da limpeza geral, ainda que o chão estivesse sujo e fedorento, o ar perfumava-se com o incenso dos sumarentos limões, da dourada canela, dos rijos camarões, dos fumegantes papos-secos, dos frescos coentros, do robusto queijo da serra. Aquilo, para Joaquim, era um concentrado de vida.

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