7 de dezembro de 2009

João Maria


É dezembro. No lá-fora, tudo parece estar parado. Tudo, no lá fora, corre tranquilo, são folhas secas, caducas, moribundas e pardacentas e tranquilas. O sol vê-se, sim, o sol vê-se não. Não se vê, o sol. Tanto faz, que o sol não se veja. É dezembro, e está tudo mudo. No cá-dentro, é a lâmpada fluorescente que se destaca, aquela lâmpada que me dava cabo do tino, aquela lâmpada ecológica vinda lá do-alto cuja luz irritantemente lúcida e límpida e pura e e puritana daria vontade de estoirar com ela, antes que a tipa desse cabo de ti, essa merda de luz rígida que põe todos os teus defeitos a nu. Antes, daria cabo dela. Agora, tanto faz, que a luz seja irritante e lúcida e límpida. Não tenho de fugir dela, não temos de inventar uma tarde abrigada a lençóis de flanela e alimentada a filmes de Fellini e abrilhantada a gelados da Haggen Dasz. Tanto faz, que o realizador deste filme esteja curto de ideias e a tarde seja igual e seja dezembro e o lá-fora esteja parado e frio e o cá-dentro seja uma luz fina e límpida e pura e puritana e aborrecida. Tanto faz. Há um pano de fundo (e o pano de fundo deixou de ser uma metáfora fácil, o pano de fundo passa de repente, sem aviso, a prosaicamente traduzir uma fraldinha-de-pano com que, no meu ombro esquerdo, porque me dá mais jeito e porque não no esquerdo, aconchego o arrotito que aí virá, quanto mais depressa melhor, e passo a fazer figas pelo arrotito, quem diria que eu faria figas por arrotitos e pieguices saídas de um catálogo social de bons sentimentos inspirados por recém nascidos). Tanto faz que o director de fotografia esteja virado para dias pardacentos. Neste deserto de dias do lá-fora, dou-me conta de que um filho não é um ser humano à-parte, é um esticamento do teu corpo, do teu humano corpo, é um órgão adjuntivo que deves preencher de sangue quente, do teu sangue, de pensamentos, dos teus pensamentos, dos risos, dos nossos risos, de suspiros, dos nossos suspiros, de respirações, dos teus bafos, dos teus bafos tranquilos, como um dia cinzento de dezembro, e que bonitos que de repente são os dias plúmbeos de dezembro. Se ele chora, és tu que choras, se ele ri, és tu que ris. Eis a alma gémea que procuraste indefinidamente e que encontraste sem fazer por isso. Tanto faz, o tempo feio. Tanto faz, o lugar-comum. Tanto faz, a originalidade perdida.


Agora, e sem que deixes de ser quem és, tem pouca importância, quem és.

Em suma, deixando-me de merdas e trocando por miúdos: um filho é um ser humano a distância zero de ti. Ele és tu e, o que é mais importante, tu és, e serás sempre, ele.

E a mulher que fez este filme possível, mesmo num dia plúmbeo de dezembro, ela é a tua heroína.

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19 de setembro de 2009

Retalho da vida de um consultor que às sextas à noite queria ser incógnito

Quando, à porta do melhor clube do mundo e arredores, nem preciso de trespassar (à melhor socapa) a longa enguia de corpos tensos e faces maquilhadas de deslumbramento de estreia noctívaga, todos tensa mas ordeiramente alinhados uns por cima dos outros , quando o rapaz (que asseguro portar, parece que há séculos, o mais elegante bigode da noite lisboeta), (aquele que por aí diz dar ares a um certo d’Artagnan), quando, pois, esse (perpétuo) rapaz rompe a cobra juvenil que se estende dos poiais de são bento até, pelo menos, ao silo do combro, quando abre os braços esbracejantes, gerindo, com saber de quem sabe, o seu próprio silêncio, na expectativa, pelo seu gesto inaudito, quase divino, que a expectativa atinja o ponto de ebulição, quando com tais gestos misteriosos de gato silencioso e de fino bigode, silencia a imberbe multidão, quando a esguia e tenra turba está incrédula e curiosa e deslumbrada e obediente e muda perante aqueles braços autoritários, quando eu estou ainda mais incrédulo e curioso e envergonhado e desconfiado quando começo a suspeitar que os gestos circulares dos teatrais braços podem (será mesmo?) ser dirigidos na minha direcção, quando os braços do porteiro do melhor clube do mundo e arredores descem, desenhando uma desusada mas elegante vénia, quando o sósia do Quarto Mosqueteiro, no ponto de cozedura da expectativa, (fitando-me cara a cara, para que não restassem dúvidas),

clama,

apregoa,

vocifera,

bradeja,

urra,

ordena:



“Abram alas,

Putalhada!

ABRAM ALAS ao VETERANO!”

Quando o impossível sucede, eis que , quiçá, terá chegado o momento de me questionar se, não é?, não é chegada a hora de pôr em consideração a hipótese de, talvez, guardar para sempre os all star na gaveta, dar um perene nó à gravata e tocar a rebate, pensando nos frutos suculentos que a idade madura me proporcionará.

E tocar a fingir que a vida é uma coisa séria.

E depois, entrado, passa isto e volta tudo, claro está, ao ponto de partida.

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28 de agosto de 2009

Um

“UM! “, berrava o gordo, “DOIS!”, pesado, “TRÊS”, rouco, como um cabo passando a revista, “QUATRO”, espantado como se nunca tivesse posto a vista em cima do carro coberto de poeira, “CINCO!”, lívido por lhe teimarem em ocupar o território de macadame, “SEIS!”, o gordo, descendo a rua à beira do passeio, contava, indignado, mais um paquiderme de aço estacionado no passeio, “Sete…” e a repetida competência das suas contas de somar (que não a monotonia da auto-atribuída tarefa), já lhe afrouxava o timbre, “oito…”, quase derrotado por tanta aritmética, “nove” e quem se desse ao trabalho de o observar não saberia se fazia contas aos invasores estacionados naquela rua do bairro da Ajuda ou se os próprios passos arrastando a camisa azul que se desfraldava por sobre os jeans que, assim tão largos, o não faziam mais novo, mas nem por isso deixava de, mais tímida mas ainda assim decidamente, fazer saber à vizinhança que aquele BMW preto reluzente parqueado em frente ao vinte e oito da calçada era para ele o usurpador número “nove”, mas esmorecia já, e baralhava-se, e ao fiat que se lhe seguia nomearia, talvez só para variar, “cinquenta e um!”, não se dera o acaso de um sujeito, anonimamente protegido pela s alturas de um terceiro andar com marquise, gritar, talvez só para fazer pirraça ao tolinho anafado, precisamente, lá está, “cinquenta e um!”, por acasos que a ciência estatística declararia curiosas, mas pouco impressionantes, dada a irrelevância da amostra, pelo que o gordo retomou o fio à meada, e, de orgulho ferido, mirou com inusitado introspecção analítica o fiat (croma azul matriculado nos idos de noventa e oito, para quem cuide de detalhes estatísticos), e solenemente, bradou, como se estivesse sob juramento de bandeira, “DEZ!!!”, em vez de cinquenta e um, como esteve para proferir e como o sujeito coberto de anonimato de marquise decerto pretendia, e por isso mesmo, só por pirraça para o seu amado inimigo das alturas, o não fez. Eis senão quando o gordo de camisa hasteada aos ventos, já se preparando para, com ânimo recuperado, etiquetar o intruso citroën saxo branco (este pouco reluzente) de “ONZE!”, ao mesmo passo que o sujeito elevadamente anónimo se aprestava para reincidir num destemido e por fim certeiramente baralhante “CINQUENTA E DOIS!!”, o inesperado aconteceu, de tal modo inesperado que deu tréguas àquela batalha combatida por armas de arremesso construídas em material numérico absurdo, de molde que o gordo desfraldado e o anónimo voador se calaram quando, surpreendidos, observaram que por eles passava um louco, sim, um louco, equipado a rigor de louco, portando calças negras tão impermeáveis que se diriam feitas de plástico, um colete negro acetinado, decorado com incandescentes (pelo menos a contra-luz) reflectores verdes, um almeida-louco, portanto, que corria à brida toda a rua abaixo, sem reparar, quanto mais colher, o caixote-do-lixo número um, dois, três ,quatro e por aí seguiria uma conta de somar, houvesse mais caixotes-do-lixo naquela curta rua da Ajuda e houvesse um tolinho que os contasse. O gordo, curioso, parou de contabilizar os efectivos do exército invasor e, tomado de súbitas ânsias, foi em penoso encalço do almeida-louco, ao mesmo passo que o vizinho das alturas se aprestava para sair do armário de varandae a toda a brida descia à terra pelas escadas escuras de madeira carunchosa gasta por tantas solas, e todos se encontraram, num encontro estatiscamente quase impossível, não fora a irrelevância daquele universo estatístico de um trio improvável, descendo a rua, a passo de chita, o almeida liderando, o gordo perseguindo, o aéreo completando. Até que, ao cabo da curta artéria daquele bairro da Ajuda, o trio estacou, cortado o passo por uma amarela fita reluzente, impregnada de uns pós-modernos dizeres: “Polícia, não trespassar”.

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2 de julho de 2009

Retalho


Uma lama de calor tombava sobre o bairro de Alfama, amolecendo as casas descascadas e as indignações dos marchantes que se recolhiam para dentro delas curando ressacas e guardando para mais tarde intermináveis discussões de protesto sobre mais uma vitória, é claro que comprada, da marcha de Xabregas, estavam todos feitos, os júris e aqueles orientais, era assim que chamavam a todo o munícipe que vivesse para lá de Santa Apolónia, sem distinção, mas sobre estas singularidades bairristas falaremos depois, fica mais para a tardinha, quando a canícula se for e se puder bebericar lentamente as cervejas mornas que ficaram por aviar de véspera na noite de Santo António. (Mas lá que foi um roubo de igreja, lá isso foi.) Por ora, falemos de Romeu Fulano, assim conhecido pela vizinhança por não se lhe conhecer apelido e por nunca jamais vizinho algum se ter atrevido a dá-lo por tu pelo nome de batismo (embora para os mais íntimos o Ruço), e situemo-lo, como mandam as regras, no espaço e no tempo: Romeu Fulano, mais ou menos setenta anos feitos em Abril, que ninguém diria, usando o fato completo de linho que os galhofeiros juravam que nos meses de estio nem no leito retirava, mesmo quando a mulher era viva, faz hoje quinze dias e que Deus a guarde e a compense das passas do Algarve por que ela passou, Romeu Fulano, dizíamos, abriu com vagar a porta do seu prédio, sito às Escolas Gerais, reconhecendo não sem indiferença o ranger que a maçaneta de madeira provocava em conjugação com as ferragens ferrugentas que provocavam a abertura contrariada do trinco, ganhou balanço com um suspiro e um afago no seu bigode ralo, à soleira da porta, e enfim começou a penosa subida em direção ao mosteiro de São Vicente, tomou esse caminho sem razão alguma, só porque sim, aliás como soava fazer todos os dias, saiu pois de casa indiferente à impropriedade daquela hora em que Alfama se transformava em pueblo branco andaluz gozando clementes sestas. Dessa vez, porém, a soberba da sua rotina indiferente aos elementos parecia estar a sair-lhe cara, pois que, à medida que acompanhava em sentido ascendente os trilhos do elétrico vinte e oito, gotículas de suor crescentemente abundantes sulcavam as suas costas, manchando o casaco de linho, inofensivos estiletes pareciam querer furar-lhe o crânio, provocando-lhe insólitas tonturas de calor nunca antes sentidas no percurso rotineiro que cada dia decidia bater, depois de um balanço à soleira da porta traduzido por um suspiro e um alisar do seu bigode ralo. Pelo que, e em consequência, fez uma pausa inusitada à porta de alumínio da padaria, evidentemente encerrada, para retomar o fôlego. Fechou os olhos, Romeu Fulano, o Ruço, e deu-se conta da sinfonia tonitroante de um zumbido pesado feito de grossos moscardos e de anómalas cigarras que invadiam impunemente a urbe, muito para além dos limites que a Criação havia delineado. Teve ainda forças para tomar nota do aroma vaporoso a detritos líquidos das sardinhas assadas de véspera e cujos restos ressequiam solidificados por sobre passeios e asfaltos. Deu mais suspiro e mais um coçar do bigode, tomando balanço, e, reabrindo os olhos, preparava-se para retomar o rumo; eis senão quando, do bolso interior do seu impecável casaco de linho, um inesperado toque metálico o avisava: seria suposto, pois, pegar no telemóvel que o seu único sobrinho, Rogério, quarenta anos feitos que aparentavam muitos mais, lhe havia oferecido pelo último Natal. Pegou então relutantemente no aparelho e, com surpreendente eficácia ou desenrascanço, abriu a caixa de mensagens. Nove algarismos que não constavam da sua lista de contatos lhe comunicavam:

“Ruço, faleceu ontem Rita, vítima doença prolongada. Achei justo saberes. Enterro amanhã. Sentidos pêsames. Raimundo.”


A mulher com quem havia passado uma vida, passara-se há quinze dias e Romeu Fulano saía com o casaco de linho e o bigode ralo em direção ao Mosteiro de São Vicente, porque sim, todo o santo dia, indiferente aos elementos ou circunstâncias. A namorada de quem nada sabia há uma vida, passara-se há um dia, e o Ruço não mais retomava o passo.
Olhava para o céu cristalino, fazia ponto de mira e encarava, com irreverente persistência, dir-se-ia olhos nos olhos, o sol, como se este lhe devesse uma explicação. Até que os seus próprios olhos secavam e se transformavam em crateras de poeira e, quase cego, nada via para além de uma indistinta mancha verde de estupor. Mentalmente repassava o filme da mensagem que o Raimundo lhe enviara, tentando assimilá-la. Tornou-se rígido, um corpo só. Ainda não tinha incorporado, e traduziu, com todas as letras:
Rita, morreste-me.
E liquefez-se e estendeu-se ao comprido e jazeu entre os carris do tão típico elétrico vinte e oito.
E é sobre o que se seguiu, e sobre o que antecedeu, e sobre bairrismos e outras coisas que um dia destes, quando nos aprouver, falaremos, assim que a canícula passar e se possa bebericar lentamente cervejas mornas que ficaram por aviar de véspera em noites de Santo António.

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14 de junho de 2009

Máxima

(foto copyright by rita andorinho)


(c0nt.)


Máxima, na busca juvenil pelo detalhe, pelo concreto, queria ir mais longe, perguntar-lhe o que isso queria dizer, de se agarrar os sonhos com muita força, de se partir os sonhos se os agarrasse, mas a Velha não lhe fez caso, e começou uma reza, que jamais seria interrompida - a pequena Máxima, apesar da meninice, bem sabia que a Velha, por muito que não aparentasse, era uma mulher, e que as mulheres feitas também têm dúvidas e inseguranças, e que às vezes as mulheres graúdas têm de ser mimadas e apaziguadas como as crianças que estão por saber o porvir de ser mulher, e, nesse jogo de troca, a pequena Máxima mimava a Velha, sempre que ela se refugiava em preces, com historietas fantásticas saídas do nada. A Velha ouvia como a pequena Máxima – aflita com o negro recolher – flutuaria impune pelos ares sempre que eles parecessem pardos e revoltos e espessos de solidão e, armada com um espanador mágico, faria em pó as nuvens plúmbeas e vestir-se-ia do brilho do sol, reluzindo os calores contentes como diamantes diáfanos e seriam tão numerosos esses pingentes que os partilharia com a Velha e nunca mais ela seria: triste. A Velha sorria, com uma alegria indulgente, dessas tontices juvenis, mas o seu sorriso colidia sempre com o olhar. Sim, a sua boca desenharia um sorriso envergonhado, as suas bochechas erguer-se-iam com um esforço que parecia, à pequena Máxima, sobre-humano, mas os seus olhos nunca se juntavam à festa. Despojados, impenetráveis. Era claro, para a pequena Máxima, sem contudo ainda o saber, que era um sorriso de favor, um aceno de reconhecimento, uma reminiscência de uma vida que outrora parecia inflamada de expectativa e que parecia renascer com os sonhos da pequena Máxima, mas logo o olhar da Velha delatava, era para Máxima límpido, sem contudo saber bem porquê, o vazio, ou a sabedoria, ou o desencantamento (a verdade dos factores seria, ainda o não sabia bem, arbitrária). E, de sorriso apesar de tudo ainda posto, a Velha retomava o fio à meada e continuava na sua ladainha, no diálogo com o Todo-Poderoso, que os olhos vítreos indiciavam não passar de um monólogo. Dessa vez não foi diferente, e à sofreguidão da pequena Máxima, a Velha retorquiu, com o (des)encanto adulto pelo abstracto, pelo ambíguo: há-de chegar o momento em que perceberás como os sonhos se partem, se os agarrares com força. E em que saberás se és tu que sonhas, se é o teu avesso. Porque nunca somos um só. E nesse momento, por sua vez, os teus filhos terão o direito de tratar por: Velha.


E foi nesse preciso momento, em que, num quarto de um hotel, umas mãos carregadas a abanavam de modo a que ela própria, Máxima, por sua vez retomasse o fio à meada, que esta se deu conta que havia chegado o momento em que os seus filhos (se os houvesse) a poderiam, por sua vez, tratar por: Velha.


(cont.)

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22 de maio de 2009

Bénard da Costa

Porque não faria melhor, passo a palavra.

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7 de maio de 2009

A Velha

Amansada pelo caldo verde que a Velha, como todas noites, servira como ceia, chegava a hora mágica em que fazia as pazes com o dia.

A Velha sentava-se no cadeirão de palha e pregava à lareira, beijando de quando em vez o crucifixo, que segurava com força entre as mãos rugosas, pintalgadas de manchas castanhas que a Pequena percorria como se fossem misteriosos continentes desenhados num mapa de outro mundo.

Orar terços, rezar novenas, rogar aos santos que a acudissem, parecia ser mister único da Velha. Fazia-o ora com aparente indiferença, ora num fervor de contorcionista, que fazia bailar o longo xaile negro que sempre trazia vestido e que parecia conduzi-la ao centro do universo. A Pequena habituara-se de tal modo àquela ladainha, que, se deixava de a ouvir, receava que a Velha se desfizesse em pedaços, temendo que a lengalenga fosse a argamassa que juntava as peças frágeis daquele corpo mirrado.

A oração era a companhia da Velha e a Pequena abrigava-se no casulo protector da litania.

Tirando as orações, pouco mais a Velha dizia. Mas, terminada a ceia e despachadas as últimas novenas, a Pequena pousva a nuca no colo da Velha e os rostos de ambas brilhavam com os seus relatos. Era a essa hora que a Velha escutava atentamente o que a Pequena lhe tinha para contar. Invariavelmente, eram sonhos, pois que a Pequena, mesmo se desperta, vivia sempre noutros mundos. A Velha nunca a contrariava, por mais estapafúrdios que os relatos fossem, ouvia-a num silêncio a meio caminho entre a atenção e a condescendência, como se imitasse o Padre Vasco que tantas vezes a ouvia em confissão.

Certa noite, com a inocência que ainda não perdera pelos meandros da vida, a Pequena perguntou-lhe:

“Avó, os sonhos tornam-se realidade?”

A Velha pensou por longos momentos. O silêncio sufocou a Pequena como um manto grosso e, à medida que aquele tempo despido de sentido se arrastava sem que a Velha dissesse ai nem ui, a Pequena, de simplesmente curiosa, ficou receosa, com uma expectativa sobre o que aí viria que lhe dava um nó na garganta. Seria aquela uma pergunta proibida? Virou lentamente o pescoço e observou a Velha, à cata de uma pista que decifrasse o mistério. Os sulcos que percorriam aquele rosto retalhado em rugas mostravam ponderação, em vez de indecisão ou arrelia. A pequena acalmou e acabou por sossegar de vez com o sorriso que a Velha lhe dirigiu, como se finalmente se tivesse decidido. Com vagar, retorquiu-lhe as palavras que agora, naquele frio quarto de estalagem, lhe voltavam à memória, como um aviso:

“Queres saber se os teus sonhos se tornam realidade, Máxima? Sim, se não os partires.”

“E como os posso partir?”

“Se te agarrares a eles com muita força.”

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1 de maio de 2009

Máxima

(Cont.)

Máxima não quer pensar e por isso mesmo foca a atenção nos detalhes: faz uma pausa para recuperar o fôlego que é preciso para se chegar de mansinho à realidade, não o quer fazer de rompante, não quer simplesmente abrir os olhos: ganha tempo com os outros sentidos: sente as suas costas amainadas por uma inusitada camisa de noite, feita de sedas que a sua bolsa jamais alcançaria; um tecido feito de pudor, leve, diáfano, de um cobre quase celeste, que não vê ainda, e ainda não quer ver, mas imagina, um vestido de uma sedução paradoxalmente angelical, que não combina com ela; sente-se nele como um peixe fora de água; e depois o olfacto: há uma pureza de água de nascente que lhe conspurca as narinas, como se as mil lavagens dos esticados lençóis de linho conspirassem contra a sua modéstia original, desnudando-a, em vez de a camuflar, na sua simplicidade amorfa; chilreiam os pássaros, lá fora, numa cadência rítmica de que jamais se havia apercebido; e tudo isto é insultuoso, tudo isto a induz à deriva, tudo neste hotel de província, para ela de um luxo que os olhos de um cidadão urbano desdenhariam, põe Máxima no seu lugar; sente um peso que a esmaga, e ainda não teve o arrojo de abrir os olhos. O Diabo te carregue, Máxima, está-se nas tintas, e decide-se. Abre-os. E vê dois pontos pequenos, escuros como a noite, que se alargam à medida que a sua íris tenta focar, debalde, não há nada que foque a esta curta distância, dois pontos negros desrespeitam os limites toleráveis da intimidade, dois olhos vítreos tomam-na de assalto, e ela recua e cerra-os de novo, e umas mãos poderosas arranham-lhe o dorso por sobre a seda, e ela sente-se comprimida em toda esta pressão, a cada instante mais pequena, a cada instante mais desprovida de sentido. Meu amor, o que se passou, sussuram-lhe com hálito cálido ao ouvido, são estas palavras, ainda antes das imagens, com que Máxima cai em si. Caindo em si, Máxima quer sair dali para fora. As unhas de uma força e decisão grotescas dilaceram-na em excitação e ela numa luta vã, numa luta brava. Meu amor, o que se passou, mas meu amor, fica lá quieta, está bem? E Máxima quer ficar quieta, porque Máxima não quer abrir os olhos, porque Máxima quer ser desafectada, descomplicada, não quer despertar, porque Máxima não quer sonhar, não há direito: a sonhar. Mas é nessa recusa, é nesse cosmos pardo feito de olhos cerrados, feito de denegação, que a imagem da Velha lhe aparece.

(cont.)

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16 de abril de 2009

Máxima

imagem saqueada daqui

(continuação daqui)


Diz nada e faz por pensar o nada: mas pensar o nada é claramente pensar em tudo e esse pensamento tão pesado e abarcante e circular atormenta-a, é muita areia para a sua carroça, põe-na doida, dá-lhe achaques só de matutar nisso, o que Máxima quer é esvaziar-se, esvair-se, quer escapar desse remoinho roliço que a entope na existência, vê-se transformar-se concreta, como a argamassa em metamorfose se faz cimento, é um facto irrefutável que ela não saiu da sua cama, mas, vendo bem, não ter vivido nada é um alívio, Máxima, por milagre, é honrada, não deve nada a ninguém, não escapuliu com o amante para a pensão, não mordeu maçã alguma, Henrique não morreu a meio caminho do seu pecado, Henrique não finou por o ter abandonado, não há que fazer penitências, foi tudo um sonho frívolo, frívolo como o são todas as mulheres, bem vistas as coisas tem de pagar pelo pecado original e se a penitência é levar uma lambada do seu marido, ela bem merece a lambada, reze-se um Pai nosso, leve-se uma estalada e estás perdoada, Máxima, o reino dos céus para os pobres de espírito e deixa-te de merdas, Máxima, porque raio não queres abrir os olhos, porque diabo os cerras para não veres o Cristo pregado na parede nua do teu quarto, em nome de quem fazes por não sentir o rubor na face que permanece do castigo do teu marido, é só mais um simbólico correctivo de entre tantos que ainda estão no ror do deve e haver desde os tempos bíblicos, o justo paga pelo pecador e assim está escrito e não há nada a fazer, e então porque sentes uma febre que te alaga toda a fronte, quando foi só um sonho que te aqueceu mais uma indiferente noite de tédio, e porque quando queres sorrir com fleuma o teu sorriso tolo de sabida quando o parvo do teu marido te assoma ao ouvido, assustado – uma vez sem exemplo - “o que foi Máxima”, quando vais dizer, não foi nada, Júlio, foi só um sonho, coisas de mulher, porque raio tu te fechas, e insistes em aferrolhar a sete chaves a tua vista, porque fazes de conta de não sentir o bafo quente do rafeiro que te sopra ao pescoço Acorda, mulher, mas o que te deu?, abanam-te o corpo todo pegando-te pelos ombros e então porque carga de água queres voltar ao sonho, queres tu viver o que de facto jamais viveste, e fechas os olhos como que sentindo a surpresa da criança que pela primeira vez viu os seus pais amando-se como as bestas quando estão de cios, e fazes gazuas aos teus olhos até sentires as pálpebras ardendo para escapar da inteireza, e não queres pensar, e não querer é em si um acto de vontade, que era a última coisa que querias, ter vontade, e quando tudo está prestes a ficar turvo, e plúmbeo, e desvanecido e tranquilo como o espelho que o lago faz nos dias de verão cálido, como o gume que te esfria compadecido o pescoço, quando tudo parece voltar ao seu devido lugar, quando tudo está arrumadinho e quase adormeces para sempre, tão inócua como a rola, contrafeita tornas a sentir a voz, do fundo de ti renasce aquela voz rouca que te faz reacender a fogueira, ruges flamejante de agitações, entreouves aquela voz de poço que te apavora e que te faz sentir viva, Máxima, o que te deu, criatura?, aí não resistes, abres, que remédio, as cortinas do teu olhar, e é com horror, mas sobretudo com alívio, que te apercebes que aquela súplica assustada provém de uns lábios finos que (deveras) mordeste, e que ele está bem vivo, e que o pecado é bem real, e que é Henrique que, te diz, Acorda, Máxima, e, uma vez sem exemplo quase te grita, Acorda, meu amor! não penses em mais nada, já passou, não penses em nada. E tu, Máxima, não queres pensar, não queres pensar em nada, não tens vontade, a mínima vontade de te armares em agreste, mas sem saber de onde isso te vem, pensas, morreria, morreria, no altar de ti, mas ao altar já foste tu, Máxima, e não com Henrique.


(Cont., ou talvez não, dir-me-ão vocês, irrequietos e impacientes leitores)

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8 de abril de 2009

Last minute sale


Aos interessados, nesta Páscoa recomenda-se um fim de semana na belíssima região transalpina dos Abruzzi. Diz que há parques de campismo onde nada falta. E de borla.

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27 de março de 2009

Máxima

Mal toma consciência de que a chamam, Máxima deixa o pinheiro para trás e desata a correr com ímpeto de pavor. A mata é espessa e Máxima pouco enxerga naquela neblina, arranha-se por silvas, azevinhos e giestas, desvia-se de pinheiros, carvalhos e vidoeiros, tropeça em calhaus de quartzo, escorrega em camadas de caruma, ouve (ou pensa ouvir) o bater das asas de uns corvos tomados do mesmo pânico, Máxima é um animal acossado numa fuga que vale a vida. Debalde: a voz cava teima em fazer-se ouvir: Máxima, Máxima!

Não olha para trás, continua a correr sem destino, bem sabe que as forças lhe vão acabar, os pulmões são foles furados, as pernas bigornas, o cabelo é vime que lhe atrapalha os olhos, o pescoço uma camurça húmida de transpiração e a voz, sempre a voz, sopra-lhe nos ouvidos um bafo quente: Máxima, Máxima.

Sente uma bofetada no rosto e pára, estaca sem que o tivesse ordenado aos membros. A cara arde-lhe como uma febre. O nevoeiro dissipa-se e Máxima apercebe-se que não se encontra em bosque algum, mas deitada numa cama, a sua cama.

“Máxima, Máxima!! O que tens?”

“Nada. Não tenho nada.”

(Cont.)

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25 de março de 2009

O Profeta volta à terra


Lisboa, 30 de Julho.

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12 de março de 2009

Máxima

Foto saqueada, uma vez mais, daqui. Este retalho é continuação deste retalho.





À luz baça da alvorada que se anunciava (como era possível ter passado tanto tempo) não tinha pistas para discernir onde se encontrava. A paisagem não lhe era familiar, ela que tantas vezes tinha percorrido aquela estrada, a mesma que tinha traçado, em marcha inversa, com o seu amante, antes do momento fatídico que alterararia a sua vida para sempre. Os castanheiros e rochedos graníticos tinham desaparecido por artes mágicas e Máxima, à sua volta e no nevoeiro que repentinamente tinha caído, mal conseguia enxergar um palmo à frente do nariz. As vozes, cavas e indistintas como o rosnar de um mastim, aproximavam-se, sem que Máxima se apercebesse do que diziam. Instintivamente, escondeu-se por detrás de uns pinheiros. Encolheu-se o mais que pôde, aterrorizada, ela que (apercebia-se agora) durante tanto tempo deambulara sem rumo certo, perdendo-se no desespero. As vozes estavam cada vez mais perto. Tremeu da cabeça aos pés: alguma coisa lhe dizia que não devia revelar-se aos sujeitos que se aproximavam, que a única coisa que importava era que eles não soubessem de que ela ali estava e o que lhe tinha acontecido. Nem que a apatia representasse a morte certa de Henrique. Rezou, Máxima, sem abrir os lábios, rogou a Deus que os caminhantes passassem do outro lado da estrada e não a notassem. De novo se sentiu a criança que fora, fazendo tudo para se fundir com o pinheiro. As vozes chegavam quase à sua beira, nem assim Máxima entendia o que diziam. Um suor frio percorreu-lhe todo o comprimento da coluna. Cada vez mais perto, Máxima rezando Avé-Marias. O nevoeiro fechava-se em si mesmo, enrolava-se num novelo de algodão espesso, tosco, agreste, que a sufocava. As vozes mais intensas.

As vozes? A voz. Aqueles eram sons de uma só alma. Um monólogo. Um chamamento. A princípio, não quis acreditar. Mas a voz rouca estava já demasiado próxima para que Máxima pudesse recusar ouvir o que dizia.

“Máxima!”. “Máxima!”.




to be continued.

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2 de março de 2009

Retalho

Quarenta anos tinham passado desde que ali arribara e Joaquim teimava em não morrer de amores por Lisboa. Isto é lá lugar para namoros, era a resposta que Amália aturava do estafermo do marido sempre que lhe pedia para a levar a arejar. É que da cidade Joaquim pouco mais conhecia do que os nomes das ruas que a furgonete atravessava pachorrenta nas madrugadas sonâmbulas, da casa nos arrabaldes até ao mercado, junto ao Tejo. Mas ali sim, sentia-se em casa, como que num romaria virtual às suas origens. Se algum amigo lho perguntasse, não saberia nunca explicá-lo, que era homem de escasso vocabulário e pouco dado às subtilezas da metafísica (e, de qualquer modo, era sujeito de poucos amigos e nenhum deles sequer particularmente curioso, quanto mais dado às mariquices da especulação filosófica), mas sentia-o, isso sem dúvida, pois que, longe de ser sentimental, não deixava de ter vindo ao mundo provido da sensibilidade própria de quem nasce orgulhosamente campónio: para ele, nada como os víveres preparados pelas mãos instruídas de mulheres fortes, carrinhos de mão onde um mundo inteiro cabia, oleados deixando entrever um repolho aqui, um molho de cebolas ali, um cesto de pão fumegante abrindo apetites, o odor azedo de queijos cortados à navalha por dedos sujos de trabalho, chegava mesmo a comover-se com o vôo dos sacos de plástico flutuando a meia altura no mercado, pareciam-lhe, perdoe-se-lhe a rudeza da imagem, aves de rapina sustentadas no ar quente, aquecido a fritos, cozeduras e sudações laborais. Gostava do perfume do pé-de-salsa, do ruído dos jornais da véspera embrulhando os jaquinzinhos, sorria dos resmungos do louco residente, compartilhava as gargalhadas do talhante, compadecia-se, com sobranceria máscula, das inocentes zaragatas das comadres peixeiras, invejava a destre cantilena fadista dos ciganos que protestavam contra a infame prepotência do fiscal que lhes passava mais uma multa pela ausência de licença, encantava-se com os desenhos das escamas do peixe debulhado decorando de neve salgada o pavimento do recinto, enternecia-se com o amuo das crianças arrastadas pelas mães-freguesas, participava na tagarelice das velhotas da hortaliça, pilhava com parcimónia os escaparates das azeitonas gordas, galhofava dos pimentos convidando ao deboche, dialogava com os olhos redondos do besugo perguntando ao que tinha vindo, identificava-se com o coração mole da couve-flor, rebatia argumentos com peritos de trazer por casa sobre os mistérios da maturidade do melão, excitava-se, enfim, com o alvoroço permanente daquela bolsa de valores à escala humana. Até que uns anjos vestidos de bata e munidos de amoníaco esterilizavam a grande loja e tudo permanecia na obscuridade até à próxima alvorada. Mas até à hora da limpeza geral, ainda que o chão estivesse sujo e fedorento, o ar perfumava-se com o incenso dos sumarentos limões, da dourada canela, dos rijos camarões, dos fumegantes papos-secos, dos frescos coentros, do robusto queijo da serra. Aquilo, para Joaquim, era um concentrado de vida.

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26 de fevereiro de 2009

as words do wordaholic


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19 de fevereiro de 2009

Retalho

Uma nuvem manhosa surpreendeu-os no caminho, deixando que o sol os vigiasse por detrás da espessura, a espaços. O cavalo de ferro relinchava, as rodas queixavam-se dando golpes como coices, como se de súbito os seus mecanismos tivessem produzido um artificial instinto de sobrevivência e se quisesse libertar das rédeas do motard inconsciente que o lançava a toda a brida, disparada como um projéctil furioso pelas estradas de Monsanto. Quente, imóvel, sonolento no bafo, o bosque, revelado às claras, apavorava-a, como se a luz do dia concretizasse os pinheiros, eucaliptos, amendoeiras e demais obstáculos verticais que, na obscuridade, ela evitava com imprudência ágil, obedecendo ao pulso firme do dono. O motard conduzia-o por uma curva longa, o dorso quase raspando o asfalto, e enfiava-a agora pela descida até ao grande viaduto. Não oiço nada, pensava, só o cantar agudo dos pneus, não sinto nada, só a vibração dos metais, em ziguezague serpenteio entre veículos, carro após carro após carro, o vento esbofeteia-me a cara, o peito comprimido contra o ar feito uma muralha, o rosto é plasticina contorcida, vejo o meu caminho, encolho os traços que pintam as bermas da estrada e transformo-os numa linha só, carros e camiões, navego-os como uma bala, pneus, ligas leves, os espelhos revelam sombras de rostos assustados deixados para trás, desvio-me desses elefantes com rodados longos no lugar de patas que me passam ao lado, galgo esta curva e vou galgar a próxima, cada vez mais depressa, o motor quente quer voar, o meu cavalo de ferro, borracha e combustível dá um salto levantando a dianteira, o guincho, a borracha queimada entra-me nas narinas, é uma droga, é uma doga que acelera pulsações, o coração bombeia fluidos, sangue e seiva e adrenalina, ritmo sincopado com pistões e válvulas, um coração nervoso que bombeia e bombeia e bombeia, e passo este gajo e agora o próximo, e passo o vento e passo os pássaros e tubarões prateados e cães atravessados no caminho, e as figuras e os rostos e os corpos, e assim não sinto mais nada, e nesta vertigem não penso em mais nada, e nesta vertigem não penso no que ficou por te dizer, que devia tê-lo dito mas estava bêbado da tua beleza, que a minha pele tem memória das tuas mãos que nunca me tocaram, está impregnada do perfume que só ao de leve senti, que o meu tacto sente as tuas vibrações, que as tuas conquistas são as minhas derrotas, cada encontro com a Lisboa em penumbra está marcada pelos teus restos e rastos, por tua causa amo agora Lisboa como quem ama uma mulher de rosto desfigurado, tudo em mim é compostura, compostura, compostura e medo, devia ter-to dito, é um crime não to ter dito, é um crime não te ter falado dos diamantes que nadam nos teus olhos, esses olhos pardos que em plena ausência me atormentarão todos os meus dias, devia ter-te dito que, longe de ti, tu e os teus olhos cinzentos serão para sempre as testemunhas oculares dos dias iguais que se seguirão, um domingo único e solitário, sei-o de antemão, tu e os teus olhos atestarão que as mil ruas de Lisboa que percorrerei serão uma única ruína, os teus olhos ausentes confirmarão que passarei os meus dias lendo páginas rançosas de livros por escrever, rumo a um final previsível que não será feliz, em tudo o que importa tento não pensar por entre a vertigem do galope deste fiel cavalo de metais, borrachas e gasolinas, é inútil, tenho de parar. A fera de ferro calou-se. E agora? O eco deste silêncio pesado rebatido pelos muros e ruínas de Lisboa rompe-me os tímpanos. A minha vida esvai-se, como o óleo que pinga do escape. E agora? Devia ter-to dito.

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7 de fevereiro de 2009

Retalho

Foto saqueada daqui




Tanto sangue? Mas o que aconteceu?

Voltou a esticar a mão para o peito do corpo deitado a seu lado, e não sentiu nada. Reflexamente, o seu próprio coração pareceu deixar de bater.
Henrique estava inconsciente, pensou. Voltou a chamar por ele, num sussurro, as suas cordas vocais engasgadas pelo horror. Forçou-as até à dor e saiu-lhe (quase audível) o nome do lavrador.

Não lhe respondeu. Permanecia inconsciente. Permanecia ferido. “O que é que eu faço, o que é que eu faço, meu Deus?”, perguntou-se.

Gritou, tão alto quanto pôde, por socorro. Esperou uns momentos e voltou a gritar. Apenas as gotas de água afagando a cama de folhas mortas lhe respondiam.

Conseguiu num esforço desmesurado pôr-se de pé, contrariando ardores afiados que lhe prendiam as articulações e agulhas pontiagudas que lhe inflamavam o cérebro. A tontura quase a levou de novo ao solo.

Endireitou-se e olhou em frente para o tronco claro dos grandes choupos, únicas testemunhas vivas do seu pânico. É claro que não se atrevia a olhar de novo para o corpo do amante. Queria conservá-lo naquele estado de inconsciência: temia que mais um olhar, ainda que de relance, confirmasse o pior. Ou levasse ao pior.

De pescoço inclinado para as copas altas dos choupos, tacteou procurando, sem olhar, os fósforos com que Henrique acendia os seus cigarros e que sabia que trazia sempre no bolso das calças.

“É tudo medonho quando se olha no escuro”, pensou. “Quando puder ver direito, verei os seus olhos abertos – nada se passou, tudo está bem.” Mas, no fundo, temia abrir os olhos.

Um tímido raio de luz enganou a escuridão quando Máxima riscou os fósforos, protegidos da chuva pela flanela grossa dos bolsos de Henrique.

A luz envolveu o espectro inteiro no curto momento em que o processo químico da queima atingiu o seu expoente. Aí os choupos confirmaram, com o sangue-frio feito de seiva, que, de Henrique, restava apenas um resto de corpo. Máxima, com o sangue-quente feito de ilusão apaixonada, abrigou-se de novo no breu que se seguiu ao apagar do pau de fósforo. Máxima entrincheirou-se na escuridão, sentindo-se protegida pelo velo, dela hesitava em sair.

“Não, não é possível”. Decerto não teria visto bem àquela luz tímida. Henrique estaria apenas desmaiado.

Mas se continuasse assim, morreria mesmo, esvaindo-se lentamente em sangue como o suíno na matança.

Uma voz interior, a mesma que contra a sua vontade havia antes balbuciado o nome de baptismo do amante, dizia-lhe, no entanto: “Por favor, aceita, aconteceu uma desgraça. Os desígnios de Deus são insondáveis, seja feita a Sua vontade.”

“Cala-te!”, gritou Máxima, e desta vez de viva voz.

“O que fazer”, disse baixinho de si para si. “O que fazer? Não é verdade, não pode ser verdade, tenho de buscar socorro antes que seja tarde demais”, sussurrava, sentindo calafrios.

“Se ao menos aparecesse alguém. Se ao menos algum pastor viesse atrasado da recolha”. Mas Máxima pensou que um pastor não lhe serviria, mesmo que viesse, o que Henrique precisava era de um médico. Tinha de ir em busca de um, precisava desesperadamente de encontrar nestas paragens uma casa com um telefone que lhe trouxesse um médico, e a estas horas, e imediatamente.

Mas e o que fazer, deixar Henrique ali sozinho, inconsciente, à beira da morte? E se o homem acorda apenas para se aperceber que vai morrer sozinho? Melhor será fazer-lhe companhia, tranquilizá-lo, chamar por ele, despertá-lo?

Momentos intermináveis passaram, Máxima aninhava-se, como uma criança, num limbo de indecisão. Até que, num assomo de consciência adulta, Máxima percebeu que tinha de ser ela a pôr mãos à obra. Agora que Henrique jazia ao seu lado, não restava ninguém que pudesse decidir por ela.

Decidiu-se, pois, beijou a testa – singularmente gelada - do amante e trepou o monte até à estrada. Não foi difícil dar com o caminho, bastou-lhe seguir as pegadas de metal e borracha dos destroços. Dirigiu-se para norte, dando costas à Estrela, em sentido contrário ao rastro de entranhas metálicas que o Mercedes tinha antes cuspido. Não se lembrava de ter visto sequer um abrigo de pastor, quanto mais uma casa com cabeça, tronco e membros e a porcaria de um telefone que lhe permitisse chamar uma ambulância.

Mas Máxima era impelida pelo desespero, caminhando em duelo quixotesco contra todas as probabilidades. Naquelas circunstâncias, não havia outra alternativa suportável: Máxima não esperava menos do que um milagre.

E lá ia ela a passo ligeiro, tanto quanto a teimosia forçava as pernas entorpecidas.

Tentando fazer ouvidos moucos às vozes que a perseguiam.

Tapou os ouvidos com força, a tal ponto que sentiu os lóbulos a arder. Debalde, porque era da sua mente que aqueles sons medonhos lhe chegavam, não das copas escuras dos castanheiros que agora lhe ensombravam a caminhada: era o seu cérebro traiçoeiro que produzia os gemidos de Henrique chamando por si. Teria ele acordado e ela o largado abandonado nas silvas, o sangue diluindo-se na morrinha?

Fazia por não os ouvir, do mesmo modo que o pastor faz ouvidos moucos ao grunhir medonho da ovelha predilecta que foi abatida para a ceia de Natal. Era preciso não dar ouvidos ao desespero de Henrique deixado para trás, de outro modo não haveria para este remédio. Ainda assim, cedia o passo quando o cérebro lhe pintava uma imagem mais nítida de Henrique despertando e sofrendo eremita.

Quando se apercebeu das suas hesitações, acelerou o passo, lutando contra a sua imaginação. Era urgente ter uma fé absolutamente cega.

Estugou o passo, mas, mal tinha silenciado, à força de uma teimosia de paquiderme, os bramidos informes do amante moribundo, desenhou-se no seu pensamento uma imagem, nítida, precisa, acutilante, imóvel.

A memória tinha, vencendo facilmente a sua vontade, revelado, com precisão de bisturi, uma fotografia, iluminada à luz do fósforo que há momentos tinha aceso, dos lábios de Henrique: gretados, secos, pálidos, pardacentos.

Incolores.

Nesse preciso momento, discerniu pela primeira vez com uma clarividência de assombro: é assim, a morte.

Sentiu-se só, Máxima, enquanto percorria mais uma centena de metros da Estrada municipal sem avistar nem uma choupana. Sentia-se só, Máxima, enquanto a sua mente imaginava a respiração moribunda do Henrique deixado para trás, querendo, à beira do juízo final, sussurrar-lhe, por fim, palavras de ternura e de arrependimento.

Forçou-se a recordar a voz ríspida e cortante do seu amante, já tão vaga na reminiscência, apesar do pouco tempo que passara desde o último momento em que a ouvira. Forçou-se a ouvi-la, a voz seca do seu amante. “Enquanto a ouvir”, pensou Máxima, “não estou sozinha, enquanto em mim o ouvir. Há um fogo que a sua voz ateia, e essa luz está aqui, comigo, enquanto caminho”. Essa luz trazia-lhe vida, estava grata a Deus pela vida calorosa que essa luz lhe trazia. Havia mais vida nesta luz do que em toda a sua existência.

Seguia o seu passo, mais uma centena de metros, sem avistar vivalma, mas sonâmbula, perseguindo o improvável em que voltava a ter fé. A luz abstracta que levava consigo protegia-a contra a figura concreta que tinha deixado para trás: um corpo inerte, com todos os sinais de um cadáver.

A violência da palavra “cadáver” que Máxima sentiu a pairar por sobre si como uma bigorna moral prestes a esmagá-la fê-la voltar a si. “Cadáver”.

De repente, numa espiral de vertigens, mais do que sozinha, sentiu-se fora de si mesma. Sentiu que se observava, crescia grotescamente para dimensões transcendentes, expandindo-se até que flutuava muito acima do seu corpo e da matéria que a rodeava. Viu-se deambulando, sem rumo, em busca de coisa nenhuma. Nada poderia evitar o que acontecera. A voz não vinha de Henrique, vinha de dentro do seu pensamento, não havia candeia que lhe alumiasse o caminho, apenas trevas cercando-a.

Isto não vai dar a lado algum. E se encontrar alguém, o que já de si não é provável, o que lhe digo? Que tive um acidente com um sujeito às oito da noite numa estrada perdida da Beira e que o tipo está moribundo (ou estará antes que lá cheguem)? Perguntar-me-ão quem sou e o que faço. E outras perguntas mais, que antes que acabem já o Henrique terá ido desta para melhor.

E que devo responder? Não lhes direi nada, não tenho nada que responder.

Ouviu vozes à distância. Quase gritou pelo socorro por que tanto ansiara. Calou-se no último instante.

Sem inspiração que me servisse de mote, fui à caça dela num baú cheio de retalhos velhos. Saiu-me esta espécie de continuação, sei lá de onde isto me vem. Ainda estou, e estarei, para descobrir (e é esta tentativa o que de mais estimulante representa o acto solitário da escrita para um tipo, como eu, sem quaisquer ambições literárias senão as do seu mero e tendencialmente prazenteiro exercício) porque carga de água a um gajo bem disposto, com sentido de humor q.b. e com um tranquilo sentido de relatividade sobre a importância de todas as cousas, lhe saem estas coisas desconcertantes (e, à segunda leitura, um tudo quanto deprimentes) sempre que lhe dá a veneta para ficcionar. É que não sei mesmo como isto me sai. E portanto, cara Ângela, depois de muito porfiar, lamento não satisfazer a tua curiosidade, pois se nem eu satisfaço a minha. Sei lá eu anotar de mim seis particularidades. É questão de questionar o o eléctrico amarelo, de sua graça númaro 28, pode ser que o preguiçoso e plúmbeo paquiderme guinchante veja a luz ao fundo do túnel. Eu, confesso, ainda não percebi a linguagem do simpático monstro rolante.

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2 de fevereiro de 2009

Retalho



Abandono o pátio a uma hora insolitamente matutina, o selim da bicicleta cintila de geada. Fecho bem o capuz com o cachecol, exalo fumo, esfrego mãos e, ala, pedalo pelo asfalto prateado de orvalho. Rola e rola a roda, a corrente ruge de ferrugem fazendo-me companhia pelas ruas ocas. A Cerca Moura perdeu o ponto de fuga, este Tejo abraçou-a numa nuvem grossa e cinzenta, um hipopótamo de vapor chegando-se a ela como se lhe portasse um recado de Poseidon. Nela mergulho e, como São Vicente e os seus corvos, também eu desapareço. Desço às cegas a colina, os trilhos do 28 servindo-me de cão-guia. Muito para recordar, muito cedo para sentir. Lisboa, assim vestida em brumas, é furtiva como uma amante. O ar está gelado e com os olhos em lágrimas de vento busco algum indício. Para lá do velo, vislumbro um varandim, a que se segue outro, aqui uma portada se abre, uma janela aguarda que lhe subam o pano, para que a peça deste dia de Janeiro se encene. A vitrina de um café ao pé da Sé mostra a primeira fornada, mas não só. Nela se encosta o meu reflexo: conturbado, revolto, sombrio. Eis os despojos da noite sem nome, aquela que agora começo a recordar com o fôlego suspenso, um novelo de arame na garganta, a face rubra de vergonha. E enquanto o nevoeiro levanta desnudando a cidade dos seus pudores – vergonha! –, outro vulto se fixa na vitrine: comeria com os olhos o produto fumegante da pastelaria ou sondaria no meu olhar a marca do delito?

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26 de janeiro de 2009

Retalho

Recolhe as moedas todas espalhadas pelo passeio e pára de desafiar os transeuntes com aquele olhar de incriminação, a rapariga dos sapatos descascados e das roupas dois números acima da sua actual medida. De súbito, rompe num pranto e pede-me cigarros (em vez das moedas que me enchem o bolso pequenos dos jeans importunando o osso cujo nome desconheço, aquele que fica na esquina da anca). A mudança de alvo terá sido provocada por uns sujeitos que se aproximam, apercebo-me quando a rapariga se enrosca nos seus trapos e, com um arrepio, lança o canto do olho para os dois impecáveis polícias que cirandam ali pela esquina com os seus asseados uniformes azuis: pensará a rapariga estarem fazendo ronda aos seus metaizinhos preciosos e em serviço a bófia pelo menos ainda não fuma, tal mancharia a limpeza da corporação, o que não quer dizer que não roube, e a rapariga essas coisas lá terá aprendido nas aulas que a rua lhe deu, treinando-a para desmascarar o perigo, use ele o disfarce que lhe aprouver, que mil formas toma o Diabo. O vagabundo que lhe faz as vezes de um parceiro insiste em soltar-lhe imprecações ininteligíveis (que a rapariga visivelmente compreende) não satisfeito por lhe ter aplicado um violento pontapé no caixote de cartão castanho onde antes jaziam as economias (comuns?) recolhidas ao longo do dia. Finalmente vai-se, numa ira tamanha, sei lá eu porquê (sabê-lo-á a rapariga dos olhos de gato, mas entre marido e mulher, já dizia o outro).

Aproximo-me dela e faço como se me fosse sentar.

"Posso?" – indago com deferência, a modos de quem pede para entrar no hall da casa.

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22 de janeiro de 2009

Retalho

Assim, Carlos, por uns tempos, trabalhou, comeu e dormiu por entre as cinzas da Grande Fábrica Panificadora na Grande Cidade. Pegava no serviço às oito da noite e não o largava antes de o sol retomar a sua descida. O seu trabalho consistia em alimentar a enorme fornalha e limpar a escória sobejante, alimentar a enorme fornalha, limpar a escória sobejante, alimentar a enorme fornalha e limpar a escória sobejante. Enquanto se ocupava destas tarefas, outros homens encostavam-se às mesas de pedra e amassavam farinha, amassavam farinha, davam-lhe forma, davam-lhe forma, amassavam farinha, amassavam farinha, davam-lhe forma, davam-lhe forma. Os braços dos trabalhadores e o calor da fornalha produziam os únicos sons: ninguém dizia palavra, o que seria, aliás, inútil, se ninguém falava a mesma língua.

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16 de janeiro de 2009

Amor de pai ou como Oscar Wilde reencarnou ontem em Lisboa

Ontem, aniversário de um tipo já graúdo, aos olhos dos progenitores ainda sempre o miúdo.

A mãe celebra a ocasião, como é de tradição lá em casa, com um belo discurso recheado de emoção, aparentemente contida dentro dos muros da eloquência, correcta construção frásica e singular ordenação de ideias.

Desafiando a mesma tradição da casa, o irmão mais novo (fedelho que, abrigado pelo escudo protector do varão aniversariante, saiu, como é dos livros, o provocador inato da família) lança o repto ao pai: discurso!

Contrariando as expectativas, este não protesta, mira o filho mais velho e profere:

"Quando te vi pela primeira vez, pensei: como é possível amar tanto um tipo que nem conheço?"

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15 de janeiro de 2009

Parecem bandos de pardais à solta, os...


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13 de janeiro de 2009

Boutique


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Cowboys


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Road to nowhere


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Beware!


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