22 de maio de 2009

Bénard da Costa

Porque não faria melhor, passo a palavra.

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7 de maio de 2009

A Velha

Amansada pelo caldo verde que a Velha, como todas noites, servira como ceia, chegava a hora mágica em que fazia as pazes com o dia.

A Velha sentava-se no cadeirão de palha e pregava à lareira, beijando de quando em vez o crucifixo, que segurava com força entre as mãos rugosas, pintalgadas de manchas castanhas que a Pequena percorria como se fossem misteriosos continentes desenhados num mapa de outro mundo.

Orar terços, rezar novenas, rogar aos santos que a acudissem, parecia ser mister único da Velha. Fazia-o ora com aparente indiferença, ora num fervor de contorcionista, que fazia bailar o longo xaile negro que sempre trazia vestido e que parecia conduzi-la ao centro do universo. A Pequena habituara-se de tal modo àquela ladainha, que, se deixava de a ouvir, receava que a Velha se desfizesse em pedaços, temendo que a lengalenga fosse a argamassa que juntava as peças frágeis daquele corpo mirrado.

A oração era a companhia da Velha e a Pequena abrigava-se no casulo protector da litania.

Tirando as orações, pouco mais a Velha dizia. Mas, terminada a ceia e despachadas as últimas novenas, a Pequena pousva a nuca no colo da Velha e os rostos de ambas brilhavam com os seus relatos. Era a essa hora que a Velha escutava atentamente o que a Pequena lhe tinha para contar. Invariavelmente, eram sonhos, pois que a Pequena, mesmo se desperta, vivia sempre noutros mundos. A Velha nunca a contrariava, por mais estapafúrdios que os relatos fossem, ouvia-a num silêncio a meio caminho entre a atenção e a condescendência, como se imitasse o Padre Vasco que tantas vezes a ouvia em confissão.

Certa noite, com a inocência que ainda não perdera pelos meandros da vida, a Pequena perguntou-lhe:

“Avó, os sonhos tornam-se realidade?”

A Velha pensou por longos momentos. O silêncio sufocou a Pequena como um manto grosso e, à medida que aquele tempo despido de sentido se arrastava sem que a Velha dissesse ai nem ui, a Pequena, de simplesmente curiosa, ficou receosa, com uma expectativa sobre o que aí viria que lhe dava um nó na garganta. Seria aquela uma pergunta proibida? Virou lentamente o pescoço e observou a Velha, à cata de uma pista que decifrasse o mistério. Os sulcos que percorriam aquele rosto retalhado em rugas mostravam ponderação, em vez de indecisão ou arrelia. A pequena acalmou e acabou por sossegar de vez com o sorriso que a Velha lhe dirigiu, como se finalmente se tivesse decidido. Com vagar, retorquiu-lhe as palavras que agora, naquele frio quarto de estalagem, lhe voltavam à memória, como um aviso:

“Queres saber se os teus sonhos se tornam realidade, Máxima? Sim, se não os partires.”

“E como os posso partir?”

“Se te agarrares a eles com muita força.”

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1 de maio de 2009

Máxima

(Cont.)

Máxima não quer pensar e por isso mesmo foca a atenção nos detalhes: faz uma pausa para recuperar o fôlego que é preciso para se chegar de mansinho à realidade, não o quer fazer de rompante, não quer simplesmente abrir os olhos: ganha tempo com os outros sentidos: sente as suas costas amainadas por uma inusitada camisa de noite, feita de sedas que a sua bolsa jamais alcançaria; um tecido feito de pudor, leve, diáfano, de um cobre quase celeste, que não vê ainda, e ainda não quer ver, mas imagina, um vestido de uma sedução paradoxalmente angelical, que não combina com ela; sente-se nele como um peixe fora de água; e depois o olfacto: há uma pureza de água de nascente que lhe conspurca as narinas, como se as mil lavagens dos esticados lençóis de linho conspirassem contra a sua modéstia original, desnudando-a, em vez de a camuflar, na sua simplicidade amorfa; chilreiam os pássaros, lá fora, numa cadência rítmica de que jamais se havia apercebido; e tudo isto é insultuoso, tudo isto a induz à deriva, tudo neste hotel de província, para ela de um luxo que os olhos de um cidadão urbano desdenhariam, põe Máxima no seu lugar; sente um peso que a esmaga, e ainda não teve o arrojo de abrir os olhos. O Diabo te carregue, Máxima, está-se nas tintas, e decide-se. Abre-os. E vê dois pontos pequenos, escuros como a noite, que se alargam à medida que a sua íris tenta focar, debalde, não há nada que foque a esta curta distância, dois pontos negros desrespeitam os limites toleráveis da intimidade, dois olhos vítreos tomam-na de assalto, e ela recua e cerra-os de novo, e umas mãos poderosas arranham-lhe o dorso por sobre a seda, e ela sente-se comprimida em toda esta pressão, a cada instante mais pequena, a cada instante mais desprovida de sentido. Meu amor, o que se passou, sussuram-lhe com hálito cálido ao ouvido, são estas palavras, ainda antes das imagens, com que Máxima cai em si. Caindo em si, Máxima quer sair dali para fora. As unhas de uma força e decisão grotescas dilaceram-na em excitação e ela numa luta vã, numa luta brava. Meu amor, o que se passou, mas meu amor, fica lá quieta, está bem? E Máxima quer ficar quieta, porque Máxima não quer abrir os olhos, porque Máxima quer ser desafectada, descomplicada, não quer despertar, porque Máxima não quer sonhar, não há direito: a sonhar. Mas é nessa recusa, é nesse cosmos pardo feito de olhos cerrados, feito de denegação, que a imagem da Velha lhe aparece.

(cont.)

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