29 de setembro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Amansado pelo caldo verde que a Velha, como todas noites, servira como ceia, chegava a hora mágica em que fazia as pazes com o dia.

A Velha sentava-se no cadeirão de palha e pregava à lareira, beijando de quando em vez o crucifixo, que segurava com força entre as mãos rugosas, salpintadas de manchas castanhas, como continentes num planisfério.

Orar terços, rezar novenas, rogar aos santos que acudissem numa cantilena monótona era tarefa que a Velha desempenhava amiúde, ora com aparente indiferença, ora num fervor que parecia conduzi-la ao centro do universo. Habituei-me de tal modo àquela ladainha contínua, que, se deixava de a ouvir, receava que a Velha se desfizesse em pedaços, temendo que a rotina sonora fosse a argamassa que juntava as peças frágeis do seu corpo mirrado. A oração parecia protegê-la e eu sentia-me protegido.

Tirando as orações, pouco mais dizia. Mas, acabado o terço da noite, colocava a minha nuca no seu colo e os nossos rostos brilhavam com os sonhos que lhe revelava. Era só depois da ceia e da oração que lhe seguia que a Velha ouvia o que eu tinha para contar. Nunca os punha em dúvida, por mais absurdos que pudessem parecer, embora, quando uma noite lhe perguntei se os sonhos se tornavam realidade, ela respondeu-me

“Se não os partires”

“E como os posso partir?”

“Se te agarrares a eles com muita força.”

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23 de setembro de 2008

Ouvindo a conversa na mesa do lado

- Epá, este fim de semana fui almoçar a casa do Pedro.
- A casa de praia?
- Sim, pá. E conheci a mulher do gajo.
- E então?
- Epá, é feia, feia, feia que nem imaginas.
- Pior do que as nossas?
- Nem imaginas, pá.

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19 de setembro de 2008

Expliquem-me como se fosse muito burro

- Então diga lá, ó Alberto Martins, o senhor é a favor do casamento entre homossexuais?

- Ao contrário da conservadora líder do principal partido da oposição, que acha que se deve chamar outra coisa qualquer ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, nós no PS somos muito progressistas. A resposta é sim.

- Então o PS vai votar a favor da proposta do BE e dos Verdes para admitir o casamento entre homossexuais.

- Não.

- E vai dar liberdade de voto aos seus deputados?

- Somos um partido plural, mas neste caso não vamos dar liberdade de voto.

- Vamos lá ver se entendi? É a favor do casamento entre homossexuais?

- Sim.

- E o PS vai votar a favor?

- Não.

- E não vai dar liberdade de voto?

- Não.

- Porquê?

- Porque a medida não estava no programa eleitoral, portanto o PS não tem legitimidade para a tomar.

- E a nova lei do divórcio, estava no programa eleitoral?

- Não.

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17 de setembro de 2008

O consultor rotundo

É tão gordo, tão gordo, tão gordo, que nunca desaperta a gravata, mesmo quando o calor aperta o pescoço e a gola da camisa se inunda de transpiração: não sobraria ponta de gravata para manter o nó.

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Coisas do bloco de notas

(cont.)

Terei saído porta fora e os carros terão passado ao largo sem que lhes saísse fumo dos bofes, as crianças recém arrancadas ao leito terão feito idênticas birras de sono expressando guinchos sem que um berro lhes saísse das goelas estridentes, uma cadeia em série de mães terá ameaçado a palmada no rabo com a mão aberta, irrompendo-se-lhe esgares mudos de impaciência, o cão vadio que mora debaixo do cornijo na esquina terá mijado no pneu da carrinha abandonada sem que nascesse o riacho delimitador de território canino. Da boca desdentada do vendedor de cautelas, hoje cerrada, sai um pregão, incrivelmente mais sonoro, mais límpido, que atrai as atenções dos transeuntes, que augura TANTOS-MIL-EUROS-SEXTA-FEIRA-ANDA-A-RODA. Hoje o pregão saiu com voz de Manuel Alegre, como se a sorte da nação se confundisse com a sorte da taluda. O painel electrónico estacionado em cima do viaduto, virado para a centopeia com rodas no lugar de patas que entope este carreiro, também esse ofusca tudo, cintilando ESTREIAS e FINAIS DE TELENOVELAS e respectivos PATROCINADORES e EXPOSIÇÕES e concernantes FILANTROPOS.

O chumbo atmosférico mói, dissolve as coisas de que o quotidiano citadino era feito.

Menos a publicidade.

Quero lá saber.

E começou, o dilúvio, como parecia estar escrito, nessa manhã em que um Inverno tomou de assalto o Verão de calendário, sem pedir licença.

E eu sem guarda-chuva.

Nesse preciso momento, escorrego.

Escorrego e deslizo, sobre um mar de folhetos publicitários que jazem na rua, caídos do céu metálico. O asfalto está grávido de celulose.

A camada de papelada empilha-se progressivamente e os limpa-neves (não os sabia nos arrabaldes de Lisboa, mas que sei eu) chegam de imediato e não lhe dão meças, as máquinas também escorregam e deslizam.

Aos folhetos fininhos de publicidade, pequenas lâminas de barbear que esfacelavam os guarda-chuvas dos vizinhos previdentes, sucedem maços de jornais atados por cordas como se empacotados para os diversos quiosques de esquina. Peguei num deles, que me tinha caído com estertor de dilúvio a poucos centímetros do meu corpo, só por acaso não me levou desta para melhor, ou para pior, o que sei eu, e não se tratavam, afinal, de jornais, seriam grossos catálogos de publicidade, viagens em promoção a seguros e catalogados paraísos que cantam, e esses amanhãs anunciados chovem magoando os transeuntes incautos.

Os dias passam e a tempestade amaina, mas não pára. Uma contínua e modorra chuva de modestos mas insistentes folhetos publicitários mantém-se, molhando parvos, acabando por cobrir toda a via pública, uns centímetros primeiro, uns metros passados uns dias. Ao quinto dia de chuvisco publicitário ininterrupto, a papelada chega ao terceiro andar do prédio dos arrabaldes, o estado de calamidade pública foi decretado e o trânsito cessa, deixa de haver condições para a circulação automóvel, os sub-urbanos voltam aos abrigos, e, com eles, a centopeia com rodas no lugar de patas regressou ao casulo deixando o carreiro livre à PROPAGANDA. Ao menos o ruído dos escapes, rotos, remediados ou duplos, cessou, substituído porém por estridentes ANÚNCIOS sonoros a todo o género de PROMOÇÕES, vindos nitidamente da nuvem que não havia meios de embranquecer, nem com o DETERGENTE LAVA-MAIS-BRANCO que os obuses do exército lançavam inclementemente na sua direcção, sem resultados visíveis.

Vá que não vá que vivo num andar alto.

Pela primeira vez na história a televisão passava, a-verde-e-branco, o boletim meteorológico da publicidade.

E ao sétimo dia, a tempestade desabou. Granizaram todos os livros que já ninguém lia, arrastando tudo à sua passagem, rios de papel velho pareciam vingar-se do esquecimento, cascatas de filosofia existencial justificavam a sua existência. Chegaram ao meu andar dilúvios de caderninhos, daqueles de apontar notas, revestidos de cabedal preto, MOLESKINES, milhares de MOLESKINES empilhavam-se até ao meu piso, a janela quebrou-se sob o seu peso, abri um, antes que me afogasse na torrente de caderninhos de cabedal e reconheci, no átomo de segundo que restava da minha existência, naqueles gatafunhos a minha impressão digital, aquela era a minha letra.

Morri, pois, sufocado de milhares de MOLESKINES cheios de inutilidades apontadas por mim.

Morri.

Reencarnei arfante, ridiculamente perturbado, perante a luz laranja que afagava as pálpebras fechadas, anunciando o calor de uma manhã de Verão, como tantas outras.

Os discípulos daquele velho austríaco que expliquem o pesadelo, se quiserem fazer de mim um caso clínico. Por mim, estou-me nas tintas para simbolismos oníricos. Faz-me feliz, esta luz morna de Lisboa que me invade o quarto.

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13 de setembro de 2008

Coisas do bloco notas (aquele sempre deixado ao lado da cama)

Viro-me para o termómetro pendurado na parede por detrás de mim e o mercúrio parece ter perdido todas as suas coordenadas registando temperatura alguma.

Sinto-me ausente, vendo bem, nada de novo, nem me chego a aperceber de que não se trata de nada de novo, isso exigiria análise, e eu cheguei, no que toca à exploração da inércia, a uma região para lá dos limites conhecidos, não me reconheço nem deixo de me conhecer, sou melhor definição de céptico do que a encontro no dicionário – uma hipérbole de niilismo, eu sou aquele que nem acredita que exista.

Tomo uma dose reforçada de cepticismo, faço de conta de que não é nada comigo e retiro do armário, não, não é esse do pinho barato, o outro, o da kitschenete por cima do lavatório onde jazem os pratos conspurcados de restos de comida de pacote, e retiro a cafeteira engavetada com que costumo preparar o café aromático e fervente (nesta casa a única iguaria é o café de Timor com que enfrento manhãs chatas).

E esta não é chata, é esquisita, mas que se lixe, ponho-o ao lume e imediatamente me apercebo, mas que grandessíssima merda, que as munições acabaram antes mesmo do combate, a chama do pavio a álcool está, nesta manhã de chumbo, esquisitamente inerte, incolor. Cinzenta.

Raios a partam, não me dando por vencido reforço a mezinha, juntando ao preparado, apenas morno, umas pingas do meu scotch, que hoje, que grande porra, não podia senão cheirar a vodka, ou seja a nada, e saber mesmo a vodka, ou seja, a vácuo. Faz por arranhar a garganta e tanto, por quão pouco, é, por enquanto, quanto baste. Pouso a caneca no balcão, sento-me no banco alto comprado nos grandes armazéns suecos, alcanço o controlo remoto e aponto-o para a televisão. Não acende.

Porque me trocaram o ele-cê-dê por esta velha caixa de plástico preto encardido, logo a Grundig da era pré-sonyca que me proporcionava desenhos animados saídos do imaginário da cortina de ferro, aqueles que eram apresentados por aquele sujeito fininho de ar ingénuo, o careca, como é que o gajo se chamava,

Vasco qualquer-coisa,

Vasco Quinta,

não,

(porra, como se chamava o gajo?)

Vasco Granja,

É isso!,

O saudoso Vasco Granja, o que será feito do Vasco Granja da minha infância e o que será feito dos artistas plásticos da cortina de ferro e o que será feito do Marcelo de cabelos ruivos que jogava comigo à bola no campo do bairro e que era sempre chutado para a terceira equipa (como eu), e que protestava e guinchava e chorava de frustração (coitado, precisamente ao contrário de mim, que sempre soube o meu lugar, defesa central da terceira equipa, mas dava o litro pelo colectivo, era o que o treinador de fartos bigodes pregava como um suplente do padre do bairro, e o que será feito do bigodudo treinador do fato de treino do galo desportivo gaulês).

Irra, chega de comiseração infligida, de memórias tão inúteis como aquele sofá de veludo gasto com molas quebradas como algumas vidas, onde já nem eu me sento, deixa-me lá ligar o aparelho.

Acendo a televisão, carregando à manápula no botão de plástico, treque, mudo de canal, treque, nem sinal de recepção da emissão télévisiva, até que o aparelho, retorcendo-se nos seus circuitos internos, emite um zumbido de aquecimentos e o ecrã preto se vai progressivamente transformando em fantasmas esverdeados e os fantasmas dão lugar a figuras nítidas verde-e- brancas, se bem me lembro os adultos diziam que a televisão é a preto-e-branco e eu achava que era a verde-e-branco, sempre tinha mais cor, os graúdos saíram-me uns trágicos. E eles diziam-me que o gato via assim, a preto-e-branco, e eu pensava que o gato, quando acordava, também precisava de aquecer os seus circuitos internos antes de reflectir sobre a sua mansa vida felina(muito reflectia o gato, sempre pensei que ele era o mais introspecto filósofo do mundo),

E por isso é que ele se punha na varanda ao sol horas seguidas, só lhe faltava chamar “Jacaré”, mas o meu irmão mais novo quis antes dar-lhe um nome felpudo, mais digno de um bichano (“Gatucho”), e,

Quando o ecrã escuro se transforma, com vagar e aquecimentos de circuitos internos, em preto-e -branco, as câmaras como sempre, fixam o trânsito que, como todas as manhãs, se desloca como um animal único, uma centopeia de sub-urbanos, com mil rodas fazendo as vezes de mil patas, entupindo carreiros de asfalto, os pontos de reportagem são os de sempre, a SEGUNDA CIRCULAR, a PIMENTEIRA, o NÓ DE FRANCOS, o MERCADO ABASTECEDOR, a PONTE DE ARRÁBIDA, o ESTÁDIO NACIONAL, esses lugares de ninguém a quem as rádios e estações televisivas inventaram um nome.

No aparelho antigo, já aquecido a preceito (até que enfim que alguma coisa aquece nesta história) os sítios a que as rádios e estações televisivas deram um nome aparecem incongruentemente nomeados em caracteres de leste, como os desenhos animados do apresentador fininho, o Vasco não-sei-quê, cirílicos, é assim que se chamavam os caracteres, e não estranho os espantosos caracteres eslavos na televisão portuguesa, e bem assim faço por não estranhar como foi o televisor aquecer internamente com este frio de deitar abaixo o mais resistente dos lobos.

Irrito-me com a interminável centopeia sub-urbana e desligo a televisão, puxando-lhe o fio da meada, perdão, da tomada, agora calas-te, emissão télévisiva, que eu assim ordeno, num gesto fátuo de indivíduo que me dá a ilusão de povo soberano .

Acendo o transístor que me norteará o duche, impedindo que o torpor da água escaldante me adormeça com as notícias requentadas da véspera, mas hoje não sai água quente, os canos gritam mal rodo a torneira, queixam-se, a água congelou com este frio maldito e rasgará as veias da máquina hidráulica se persistir com as minhas intenções salúbricas, que se lixe a higiene, e então resigno-me a fechar a torneira e, de qualquer modo, a rádio não debita notícia alguma, fresca ou reciclada, limita-se a debitar reclames, IT´S A SONE, O REI DOS MEIPULES, O FRANGO É NA GUIA, EU SOU DONO DE UM BANCO, E VOCÊ?, O SÍTIO DOS BONS AMIGOS, HÁ JEQUEPOTE, CRIANDO EXCÊNTRICOS TODAS AS SEMANAS, COM UMA GESTÃO UNIFICADA DOS SEUS MEIOS DE COMUNICAÇÃO O SEU NEGÓCIO AVANÇA, AQUELA MÁQUINA, MEÁRI, COM CAPOTA, SEM CAPOTA, ELE É JIPE É CAMIÃO, O BRILHO CONTÍNUO, VENHA VIVER AS NOITES LONGAS DO CASINO, TIRE FÉRIAS CÁ DENTRO, ESCRITA FINA, ESCRITA LARGA, BIC, BIC, BIC, aproveito a curta pausa musical no programa de publicidade antes que este me dê cabo do tímpano, A PUBLICIDADE SEGUIRÁ DENTRO DE BREVES MOMENTOS, FIQUE COM A SUA RÁDIO, arranco o transístor da tomada, deixo o fio à meada.

Largo decidido o apartamento, entro no elevador, parece-me que entro, até dou por isso porque no elevador o meu nome está afixado como devedor reiterado no papel A4 dirigido aos demais condóminos que ANUNCIA - apre!, nuvens colossais e anúncios ensurdecedores! - anuncia o edital de trazer por casa que NA AUSÊNCIA DE QUÓRUM, A SESSÃO PROSSEGUIRÁ EM SEGUNDA CONVOCATÓRIA NA NOITE DE HOJE PARA DISCUTIR OS TEMAS CONSTANTES DA CONVOCATÓRIA QUE FOI ENDEREÇADA NO DIA TANTOS DE TAL, abro a custo a caixa de correio, sei-o porque o gatilho da fechadura estava entupido com dezenas de anúncios iguais em papelinhos cortados a xizato de empregadas com experiência, PASSAM A FERRO OU ENGOMAM, COZEM E COSEM, E TIRAM O PÓ E FICA TUDO A BRILHAR, DÃO REFERÊNCIAS (bem precisava de referências), e o movimento de torção necessário para que a fechadura entupida com tanto papelinho acabe por ceder fez-me torcer o pulso e noto uma ínfima e breve dor num pequeno músculo do pulso de que não sei o nome, porque provavelmente as rádios e estações televisivas ainda não se deram ao trabalho de nomear, mas com essa ínfima dor volto, por sensoriais motivos que duram infimamente, a dar conta de mim mesmo e a tentar deixar-me de merdas e a fazer-me à vida e no meio deste pesadelo de torpor, pôr-me nos eixos, ordenando-me: “faz-te à vida”.

(Cont.)

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11 de setembro de 2008

Prenda de um alquimista

Para o amor, essa quimera que engana a inteligência raptando-nos para a adolescência, batam-se quilos de inocência com uma pitada de demência, leve-se ao forno da paciência em lume forte de tolerância, depure-se das excrescências da ganância e da desconfiança, mexa-se o produto com a varinha mágica do sorriso, e sirva-se com total imprudência.

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10 de setembro de 2008

Coisas do bloco de notas

Desperto a custo, deitado na velha cama de um só corpo, sem percepção inteira da realidade.

Não fora o arrepio que me percorre a nuca, hesitaria em categorizar o meu estado como: “em vigília”.

Levanto-me e não há chinelos que me acudam, estarão a hibernar no velho armário de pinho rasca, escondendo-se do verão no escuro, em diálogo surdo com os radiadores a óleo, os cobertores de lã puída, os anoraques herdados do adolescente que já fui.

Aproximo-me da janela, deixada aberta de véspera para alívio do bafo estival. O ar concreto que invade o quarto violenta-me. Dou-me conta de que tenho ossos. Doem-me com este frio espantoso, especialmente o maldito tornozelo direito nunca refeito da rotura de ligamentos cruzados, mas nem é por isso que os meus passos são tão medidos, cautelosos como se passeasse num bazar do Martim Moniz atafulhado por brique a braques inúteis e senhoras pechincheiras que se atropelam mutuamente, os objectos e as sujeitas, quero dizer. Antes de ser corpo, sou instinto e o que me afrouxa a marcha não é o maldito tornozelo. É o medo.

Um medo irracional, e não o são todos? Não bastava este gelo dos diabos a meio de Agosto, acompanha-o um breu que me põe em cautelas de gato à rasca. Quando finalmente me chego ao beiral da janela, o que observo não faz sentido: um manto de chumbo paira parecendo medir as coisas todas, colossal. Como ele, fico na expectativa.

Até que aquela prodigiosa massa cinzenta de que é hoje feito o céu decide-se e apropria-se da realidade, soberba, desce à terra, imparável, como se fosse uma metáfora da vontade dos deuses, abafa todas as cores por entre a malha negra de que, incrivelmente, é tecida.

O coro colectivo da passarada das traseiras, que ainda ontem cantava, chilreava e gralhava, dando um ténue sinal de vida a este bairro dos arrabaldes, emudeceu. Devem ter emigrado, asas para que vos quero, sem tempo para fazer malas, lá para as áfricas amenas.

Troa um silêncio de morte.

Fecho o silêncio com a janela e recolho-me no conforto do apartamento, mas também aqui paira uma tranquilidade excessiva, ameaçadora, que a vibração do ultrapassado frigorífico não chega a amenizar (há quantos anos não dava ouvidos ao frigorífico, o tipo parecia o pedinte da esquina da Casal Ribeiro, alertando transeuntes que o não ouvem para o fim do mundo que aí vem, mais cedo do que pensam, os transeuntes).

Desperto, assim, em pleno Verão, num insólito Inverno que desceu sobre a cidade, um Inverno tão fora de lugar que apenas contido nas fronteiras da ficção o catalogo como: "verosímil".

(cont.)

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5 de setembro de 2008

Retalhos da vida de um consultor

Estou tão estafado disto, que qualquer dia passo de Novo-Rico para Novo-Pobre. Bonita ambição: encho o peito de ar, alardeio o meu nível cultural acima da média, desdenho a corja que me rodeia, borrifo-me para a Corporação e vou à minha vidinha: orgulhoso e sem dinheiro para mandar cantar um cego. Ele havia uma starlette qualquer de Hollywood (cujo nome não me recordo, mas, lá está, é uma temática que não me merece muito importância) que rezava assim: "Se queres saber o que Deus pensa de quem tem dinheiro, basta observar a quem o entregou."

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