13 de setembro de 2008

Coisas do bloco notas (aquele sempre deixado ao lado da cama)

Viro-me para o termómetro pendurado na parede por detrás de mim e o mercúrio parece ter perdido todas as suas coordenadas registando temperatura alguma.

Sinto-me ausente, vendo bem, nada de novo, nem me chego a aperceber de que não se trata de nada de novo, isso exigiria análise, e eu cheguei, no que toca à exploração da inércia, a uma região para lá dos limites conhecidos, não me reconheço nem deixo de me conhecer, sou melhor definição de céptico do que a encontro no dicionário – uma hipérbole de niilismo, eu sou aquele que nem acredita que exista.

Tomo uma dose reforçada de cepticismo, faço de conta de que não é nada comigo e retiro do armário, não, não é esse do pinho barato, o outro, o da kitschenete por cima do lavatório onde jazem os pratos conspurcados de restos de comida de pacote, e retiro a cafeteira engavetada com que costumo preparar o café aromático e fervente (nesta casa a única iguaria é o café de Timor com que enfrento manhãs chatas).

E esta não é chata, é esquisita, mas que se lixe, ponho-o ao lume e imediatamente me apercebo, mas que grandessíssima merda, que as munições acabaram antes mesmo do combate, a chama do pavio a álcool está, nesta manhã de chumbo, esquisitamente inerte, incolor. Cinzenta.

Raios a partam, não me dando por vencido reforço a mezinha, juntando ao preparado, apenas morno, umas pingas do meu scotch, que hoje, que grande porra, não podia senão cheirar a vodka, ou seja a nada, e saber mesmo a vodka, ou seja, a vácuo. Faz por arranhar a garganta e tanto, por quão pouco, é, por enquanto, quanto baste. Pouso a caneca no balcão, sento-me no banco alto comprado nos grandes armazéns suecos, alcanço o controlo remoto e aponto-o para a televisão. Não acende.

Porque me trocaram o ele-cê-dê por esta velha caixa de plástico preto encardido, logo a Grundig da era pré-sonyca que me proporcionava desenhos animados saídos do imaginário da cortina de ferro, aqueles que eram apresentados por aquele sujeito fininho de ar ingénuo, o careca, como é que o gajo se chamava,

Vasco qualquer-coisa,

Vasco Quinta,

não,

(porra, como se chamava o gajo?)

Vasco Granja,

É isso!,

O saudoso Vasco Granja, o que será feito do Vasco Granja da minha infância e o que será feito dos artistas plásticos da cortina de ferro e o que será feito do Marcelo de cabelos ruivos que jogava comigo à bola no campo do bairro e que era sempre chutado para a terceira equipa (como eu), e que protestava e guinchava e chorava de frustração (coitado, precisamente ao contrário de mim, que sempre soube o meu lugar, defesa central da terceira equipa, mas dava o litro pelo colectivo, era o que o treinador de fartos bigodes pregava como um suplente do padre do bairro, e o que será feito do bigodudo treinador do fato de treino do galo desportivo gaulês).

Irra, chega de comiseração infligida, de memórias tão inúteis como aquele sofá de veludo gasto com molas quebradas como algumas vidas, onde já nem eu me sento, deixa-me lá ligar o aparelho.

Acendo a televisão, carregando à manápula no botão de plástico, treque, mudo de canal, treque, nem sinal de recepção da emissão télévisiva, até que o aparelho, retorcendo-se nos seus circuitos internos, emite um zumbido de aquecimentos e o ecrã preto se vai progressivamente transformando em fantasmas esverdeados e os fantasmas dão lugar a figuras nítidas verde-e- brancas, se bem me lembro os adultos diziam que a televisão é a preto-e-branco e eu achava que era a verde-e-branco, sempre tinha mais cor, os graúdos saíram-me uns trágicos. E eles diziam-me que o gato via assim, a preto-e-branco, e eu pensava que o gato, quando acordava, também precisava de aquecer os seus circuitos internos antes de reflectir sobre a sua mansa vida felina(muito reflectia o gato, sempre pensei que ele era o mais introspecto filósofo do mundo),

E por isso é que ele se punha na varanda ao sol horas seguidas, só lhe faltava chamar “Jacaré”, mas o meu irmão mais novo quis antes dar-lhe um nome felpudo, mais digno de um bichano (“Gatucho”), e,

Quando o ecrã escuro se transforma, com vagar e aquecimentos de circuitos internos, em preto-e -branco, as câmaras como sempre, fixam o trânsito que, como todas as manhãs, se desloca como um animal único, uma centopeia de sub-urbanos, com mil rodas fazendo as vezes de mil patas, entupindo carreiros de asfalto, os pontos de reportagem são os de sempre, a SEGUNDA CIRCULAR, a PIMENTEIRA, o NÓ DE FRANCOS, o MERCADO ABASTECEDOR, a PONTE DE ARRÁBIDA, o ESTÁDIO NACIONAL, esses lugares de ninguém a quem as rádios e estações televisivas inventaram um nome.

No aparelho antigo, já aquecido a preceito (até que enfim que alguma coisa aquece nesta história) os sítios a que as rádios e estações televisivas deram um nome aparecem incongruentemente nomeados em caracteres de leste, como os desenhos animados do apresentador fininho, o Vasco não-sei-quê, cirílicos, é assim que se chamavam os caracteres, e não estranho os espantosos caracteres eslavos na televisão portuguesa, e bem assim faço por não estranhar como foi o televisor aquecer internamente com este frio de deitar abaixo o mais resistente dos lobos.

Irrito-me com a interminável centopeia sub-urbana e desligo a televisão, puxando-lhe o fio da meada, perdão, da tomada, agora calas-te, emissão télévisiva, que eu assim ordeno, num gesto fátuo de indivíduo que me dá a ilusão de povo soberano .

Acendo o transístor que me norteará o duche, impedindo que o torpor da água escaldante me adormeça com as notícias requentadas da véspera, mas hoje não sai água quente, os canos gritam mal rodo a torneira, queixam-se, a água congelou com este frio maldito e rasgará as veias da máquina hidráulica se persistir com as minhas intenções salúbricas, que se lixe a higiene, e então resigno-me a fechar a torneira e, de qualquer modo, a rádio não debita notícia alguma, fresca ou reciclada, limita-se a debitar reclames, IT´S A SONE, O REI DOS MEIPULES, O FRANGO É NA GUIA, EU SOU DONO DE UM BANCO, E VOCÊ?, O SÍTIO DOS BONS AMIGOS, HÁ JEQUEPOTE, CRIANDO EXCÊNTRICOS TODAS AS SEMANAS, COM UMA GESTÃO UNIFICADA DOS SEUS MEIOS DE COMUNICAÇÃO O SEU NEGÓCIO AVANÇA, AQUELA MÁQUINA, MEÁRI, COM CAPOTA, SEM CAPOTA, ELE É JIPE É CAMIÃO, O BRILHO CONTÍNUO, VENHA VIVER AS NOITES LONGAS DO CASINO, TIRE FÉRIAS CÁ DENTRO, ESCRITA FINA, ESCRITA LARGA, BIC, BIC, BIC, aproveito a curta pausa musical no programa de publicidade antes que este me dê cabo do tímpano, A PUBLICIDADE SEGUIRÁ DENTRO DE BREVES MOMENTOS, FIQUE COM A SUA RÁDIO, arranco o transístor da tomada, deixo o fio à meada.

Largo decidido o apartamento, entro no elevador, parece-me que entro, até dou por isso porque no elevador o meu nome está afixado como devedor reiterado no papel A4 dirigido aos demais condóminos que ANUNCIA - apre!, nuvens colossais e anúncios ensurdecedores! - anuncia o edital de trazer por casa que NA AUSÊNCIA DE QUÓRUM, A SESSÃO PROSSEGUIRÁ EM SEGUNDA CONVOCATÓRIA NA NOITE DE HOJE PARA DISCUTIR OS TEMAS CONSTANTES DA CONVOCATÓRIA QUE FOI ENDEREÇADA NO DIA TANTOS DE TAL, abro a custo a caixa de correio, sei-o porque o gatilho da fechadura estava entupido com dezenas de anúncios iguais em papelinhos cortados a xizato de empregadas com experiência, PASSAM A FERRO OU ENGOMAM, COZEM E COSEM, E TIRAM O PÓ E FICA TUDO A BRILHAR, DÃO REFERÊNCIAS (bem precisava de referências), e o movimento de torção necessário para que a fechadura entupida com tanto papelinho acabe por ceder fez-me torcer o pulso e noto uma ínfima e breve dor num pequeno músculo do pulso de que não sei o nome, porque provavelmente as rádios e estações televisivas ainda não se deram ao trabalho de nomear, mas com essa ínfima dor volto, por sensoriais motivos que duram infimamente, a dar conta de mim mesmo e a tentar deixar-me de merdas e a fazer-me à vida e no meio deste pesadelo de torpor, pôr-me nos eixos, ordenando-me: “faz-te à vida”.

(Cont.)

2 comments:

W. V. D. 13 de setembro de 2008 às 22:03  

Claro que um gajo com este estado de espirito fantástico que tu aparentas, tinha que se lembrar do desenhos animados da cortina de ferro.
Pois lembro-te que o Vasco Granja também passava muitos outros da escola americana, fantásticos, que hoje os canais ridiculos das nossas TV´s (incluindo Disney) teimam em não passar, como exemplos.
Speedy Gonzalez (arriba arriba !!)
Beep Beep e o estupido coiote
Tom & Jerry
Piu-Piu e Silvestre
etc etc etc

  © Blogger templates The Professional Template by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP  

blogaqui?
Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!