10 de setembro de 2008

Coisas do bloco de notas

Desperto a custo, deitado na velha cama de um só corpo, sem percepção inteira da realidade.

Não fora o arrepio que me percorre a nuca, hesitaria em categorizar o meu estado como: “em vigília”.

Levanto-me e não há chinelos que me acudam, estarão a hibernar no velho armário de pinho rasca, escondendo-se do verão no escuro, em diálogo surdo com os radiadores a óleo, os cobertores de lã puída, os anoraques herdados do adolescente que já fui.

Aproximo-me da janela, deixada aberta de véspera para alívio do bafo estival. O ar concreto que invade o quarto violenta-me. Dou-me conta de que tenho ossos. Doem-me com este frio espantoso, especialmente o maldito tornozelo direito nunca refeito da rotura de ligamentos cruzados, mas nem é por isso que os meus passos são tão medidos, cautelosos como se passeasse num bazar do Martim Moniz atafulhado por brique a braques inúteis e senhoras pechincheiras que se atropelam mutuamente, os objectos e as sujeitas, quero dizer. Antes de ser corpo, sou instinto e o que me afrouxa a marcha não é o maldito tornozelo. É o medo.

Um medo irracional, e não o são todos? Não bastava este gelo dos diabos a meio de Agosto, acompanha-o um breu que me põe em cautelas de gato à rasca. Quando finalmente me chego ao beiral da janela, o que observo não faz sentido: um manto de chumbo paira parecendo medir as coisas todas, colossal. Como ele, fico na expectativa.

Até que aquela prodigiosa massa cinzenta de que é hoje feito o céu decide-se e apropria-se da realidade, soberba, desce à terra, imparável, como se fosse uma metáfora da vontade dos deuses, abafa todas as cores por entre a malha negra de que, incrivelmente, é tecida.

O coro colectivo da passarada das traseiras, que ainda ontem cantava, chilreava e gralhava, dando um ténue sinal de vida a este bairro dos arrabaldes, emudeceu. Devem ter emigrado, asas para que vos quero, sem tempo para fazer malas, lá para as áfricas amenas.

Troa um silêncio de morte.

Fecho o silêncio com a janela e recolho-me no conforto do apartamento, mas também aqui paira uma tranquilidade excessiva, ameaçadora, que a vibração do ultrapassado frigorífico não chega a amenizar (há quantos anos não dava ouvidos ao frigorífico, o tipo parecia o pedinte da esquina da Casal Ribeiro, alertando transeuntes que o não ouvem para o fim do mundo que aí vem, mais cedo do que pensam, os transeuntes).

Desperto, assim, em pleno Verão, num insólito Inverno que desceu sobre a cidade, um Inverno tão fora de lugar que apenas contido nas fronteiras da ficção o catalogo como: "verosímil".

(cont.)

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