18 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Agora é este o cenário: um shopping center de subúrbio com quarenta anos.

Descontando a alcatifa que antes havia galgado e serpenteado os corredores escuros, que foi arrancada para dar lugar a mármore (naturalmente falso), o demais preparo ficou como sempre esteve:

Dois andares de pequenas lojas prestando pequenos serviços, isto é, acessórios de telemóveis, venda de electrodomésticos, videoclubes, bijuterias e bugigangas várias, confecções e roupas berrantes, iluminação para o lar, tabacarias, lavandarias, um cabeleireiro uni-sexo que faz implantes de tranças artificiais ou naturais e até importadas do estrangeiro, restauro de hardware e outras informáticas, a capela de uma igreja baptista, fotógrafos para casamentos e baptizados, decorações para o lar, acolchoados, retrosarias, afins, e por aí adiante.

Cá em baixo, junto à saída das traseiras, um snack-bar discreto neste shopping sumido, a que um pato-bravo, num raro momento de inspiração premonitória, baptizou de “Shopping Babilónia”.

De facto, frequenta esta portuguesa torre de Babel, feita de dois-pisos-dois de galerias comerciais, uma amálgama de gentios de todas as raças, credos, origens, etnias, disposições e feitios que na Amadora se podem encontrar: trabalhadores honestos e, modo geral, bastante feios. "Esta gente", parafraseando um conhecido colunista de um jornal diário, vinga-se do dia a dia o melhor que pode refastelando-se em cadeiras de metal consumidas, atarrachadas por parafusos carcomidos, a mesas de alumínio oxidadas.

No círculo que estas mesas formam formam-se, por seu turno, comunidades (de imigrantes) que se espalham (mornamente cavaqueando) naquela imitação de esplanada

(com tanta descontração como se eles estivessem na sua terra, pensa de si para si Sílvio, contendo silenciosamente, também ele o melhor que pode, o seu desprezo).

É, pois, neste bar decrépito que elas (as freguesas) acomodam os seus rabos rotundos para observar a quantidade exacta de sacos de compras que carregam as demais

(importa sobremaneira, é bom de notar, instalar-se nas cadeiras frias com o máximo de sacos de compras possível, sinal de sucesso no sonho lusitano),

há que fingir conversar com as vizinhas (disfarçando com tragos rápidos de bicas mornas) para poder dialogar, acima de tudo e porque é isso que verdadeiramente conta, com os sacos de compras das outras.

É também na esplanada a céu fechado, que eles (os fregueses) fumam os seus cigarros nacionais (numa uniformidade de gosto que previne o cravanço) e tragam em goles gulosos cervejas de medida comedida (as grandes perdem rapidamente frescura).

Eles estão sentados no ângulo oposto ao balcão, trincando rissóis (quando sentem muita larica) e cuspindo cascas de tremoço (quando apenas a querem distrair).

Contam, nas gargalhadas que enfeitam a conversa reservada a machos, anedotas sobre mulheres. Se uma senhora se aproxima , quase sempre se calam. Ocasionalmente, dirigem-lhes a palavra (o que sucede apenas quando as qualidades sedutoras são unanimemente observáveis pela sabedoria barata daquela horda de alarves).

Estes piropos são lançados do canto onde eles, os fregueses, teimosamente persistem em se plantar:

Tal faz-se junto da penumbra que cerca a casa de banho das senhoras, à boca do trajecto que as senhoras têm de percorrer em passo rápido,

Para escapar aos olhares sôfregos dos senhores.

É, pois, neste bar, chutado para canto de um shopping remoto, que Sílvio, que nunca teve uma mãe (pelo menos que fosse digna da enormidade opressiva da palavra: “mãe”), serve com indiferença freguesas e fregueses.

Sílvio gostaria de passar à acção.

Espancar, talvez até à morte, as pessoas indiferentes. Para Sílvio, há sujeitos que não contam enquanto tal.

Infelizmente para o quadro de valores que foi interiorizando na ausência de superior aconselhamento (materno ou outro), Sílvio sente enorme frustração por ninguém tomar as rédeas.

Sílvio gostaria, é evidente, de fazer justiça pelas próprias mãos mas, não sem hedionda vergonha, resigna-se a esperar que uma mirífica milícia de jovens suburbanos trate do assunto

(Sílvio acredita ainda menos no Governo ou nos políticos, que deram provas dadas que jamais deram, dão ou darão conta do recado).

Espera que uns jovens heróis sujem as mãos por ele, para que as suas possam permanecer limpas.

E assim vai, com a ira que só a cobardia consegue suster, servindo bicas mornas e cervejas de medida comedida àquela gente suja.

2 comments:

SC 20 de outubro de 2008 às 18:44  

Ocorreu-me logo esse CC. Subúrbio, antigo, Amadora (não sabia o nome). O que é curioso, uma vez que nunca lá entrei (mas já lá passei à porta, de carro)!

Magnífica crónica, como é costume.

Garf 21 de outubro de 2008 às 14:08  

Não foi neste abençoado babilónia que há um bom par de anos caiu um óbus vindo, por acidente, dos comandos da amadora?

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