22 de julho de 2008

Conto do tempo que passa (II)


A estratégia resultou e logo o Silva foi engajado. Entrou alentejano, saiu escriturário. Num ápice.
Um ápice lisboeta. Foi um instante que nem deu para saborear, e então foi ao café da esquina, a “Flor de Santarém”, beber uma lambreta ao balcão de fórmica e tagarelar sobre nada com o escalabitano emigrado na urbe, que um tipo que entende tanto de touros também há-de entender um alentejano. Ergueram brindes à vida, à saúde e ao futuro.

No dia seguinte, o Dr. Silva, aliás “o Silva”, para o patrão, entrou ao serviço.

Com uma perseverança cautelosa e rude, foi dando de si para além do que podia e foi bebendo do que os colegas do lado lhe iam ensinando, mais do que se apercebiam. E não, obrigado, ia todos os dias inventando desculpas que não podia almoçar, que a sua firma (pois que a firma amiga do patrão amiga sua era) tinha de encerrar o ano e mais tarde havia tempo para a almoçarada, que havia um balancete para fechar, que o livrete estava caducado, que o imobilizado não tinha sido abatido com a dignidade que um inválido merece.

O tempo passava, e o tempo parecia correr de feição.

Ao fim de um ano, o patrão chamou-o ao santuário. Ao gabinete do patrão, nem mais nem anteontem. E que era para já, se não fosse incómodo para o Dr. Silva, aliás, “Ó Silva”, “ó Silva, desculpe lá se interrompo, mas tem de vir já o meu gabinete, que é tempo de avaliações.” De súbito, de sopetão. Acelerando de improviso, o tempo, esse manhoso, não o estaria enganando, apanhando-o ao pé da curva?

Sentou-se modestamente bovino a convite do patrão, o Dr. Silva, aliás o Silva, o Zé Manel, o aliás que o amigo leitor prefira, fica ao seu bom critério.

Que tinha sido um ano proficiente, o do Silva, que tinha sido um ano muito jeitoso, o do Silva, que se tinha esforçado como uma mula, o Silva, e que o patrão, que tinha muitos anos daquela lida, sabia reconhecer quem o merecia.

Que tal, ó Silva, uma diminuição no salário, insignificante, que o Silva sabe bem como estes são os tempos da amargura, que estes são uns tempos lixados? Digamos, uma diminuição de uns razoáveis dez por cento, olhe que, ó Silva, olhe que os outros, não têm direito a isto, eu cá, por consideração a um funcionário tão promissor, consigo oferecer uma diminuição de dez por cento, a culpa não é sua, Ó Silva, se não consigo oferecer mais. É o que se pode nestes tempos, que Diabo? Satisfeito, Ó Silva?

Cortou cerce a palavra (e a palavra cortou cerce o embaraço do patrão) o Zé Manel, aliás o Dr. Silva, dizendo que bem sabia a qual a conjuntura deste tempo. E que uma diminuição dessas era para ele um alento, um reconhecimento de uma aposta no futuro que o patrão estava disposto a enfrentar contra todas as marés. Tempo melhor viria, estava ele certo, o Zé Manel, ou melhor, o Silva, sabendo que não podia estar mais de acordo, o patrão.

Mais um ano passou, com esforço, dedicação, devoção e perseverando para a glória, o Dr. Silva.

Os cabelos pretos tinham ganho uns irmãos grisalhos.

Chegou o timing da avaliação para o Silva, e o patrão chamou o Silva ao seu santuário.
O Dr. Silva era um rapazote sonhador, ainda. Aquele era o seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados com uma benesse daquelas. Era merecido, não dera uma baixa, não chegara um minuto atrasado.

Ao quesito “Satisfeito, Silva?”, respondeu sorrindo, em jeito de reconhecimento da tímida oferta do chefe: mais uma mísera diminuição de dez por cento no salário.

Orgulhoso do seu esforço, Zé Manel, de seu cognome “o Silva” olhou quase com vaidade para aqueles dois anos e foi sem esforço que se livrou da casinha modesta no centro da cidade, perto do escritório, e alugou uma casita ainda mais modesta nos arrabaldes. Assim não contribuiria para a especulação imobiliária, e deixaria livre o espaço para quem nele tinha nascido, contribuindo para a fixação da população. Elevados motivos patrióticos que Zé Manel sabia que, bem explicadinhos, encheriam de orgulho a família lá na terra.

O tempo, pois, claro que ia passando, um amigo que o velava, pensava o Zé Manel entre os seus botões, na sua casa tão longínqua de tudo que nem escalabitanos que percebessem de touros havia com quem conversar. Um amigo silencioso, mas amigos, palavras para quê?

Todos os anos, vinha outro incentivo. Era a paga de tanto zelo, tantas horas mergulhado em balancetes e livros de contabilidade, diários, razões, copiadores.

E os cabelos pretos a ganharem cada vez mais compadres grisalhos. A cara chupada mirrava a olhos vistos. Fora um rapaz teso, o Zé Manel, mas, sob o peso da responsabilidade e dos cuidados na escrituração, a cada ano que passava mais débil ficava.

Ao ano n, o chefe chamou-o ao íntimo reduto do seu gabinete profissional e comunicou o enésimo corte salarial. Desta vez, a empresa atravessava um período de forma excepcional. Tinham conseguido resistir aos desafios da globalização, apostando na eficiência ao invés dos altos salários, e assim se conseguiram defender, na era da globalização, dos felinos emergentes do novo Novo Mundo. Pelo menos foi o que o Zé Manel entendeu do complexo intróito do discurso do patrão.
Em suma, a redução salarial foi um pouco maior: quinze por cento. Satisfeito, ó Silva?
Mais sorrisos, mais solilóquios.
E mais uma mudança de casa, cada vez mais acanhada e mais apartada do escritório. Agora “o Silva” acordava de madrugada. Comia cada vez menos, o que contribuía para a sua linha e, consequentemente, para uma menor obesidade do povo português. Um Índice de Massa Corporal à prova de qualquer estatística de Bruxelas. A sua tez foi passando de um rosado curado pelo sol da vindima da aldeia de Serpa para um cinzento, digno das brumas de Sintra. Mas o seu Quociente de Felicidade Interior Aparente ia aumentando exponencialmente.

Mais anos passaram, sempre amigos.

Mais irmãos grisalhos. O seu raciocínio limitava-se à lógica matemática. Sonhava com livros de inventários, cadernos de balanços, resmas de actas, folhas soltas de escrituração. Acredite ou não o amigo leitor, dava até impressão que o próprio corpo se transformava. A tez perdia cor, era um homem a preto e branco. Emagrecia cada vez mais, estava fininho como as folhas dos seus livros. As suas formas, creia o leitor, perdiam as curvas, ganhavam arestas cortantes. Geométricas.

Num desses anos, um que correu em contra-ciclo, explicando-lhe o patrão que é assim mesmo que se gere a coisa, em contra-ciclo, isto é, aumentar o benefício quando a coisa corre mal, e diminui-lo quando a coisa corre bem, o Silva, nesse ano de glória da firma, não lhe viu diminuído o salário, apenas cortado o benefício da segurança social. O Dr. Silva, pensou, de si para os seus botões, que assim diminuiria a carga das gerações futuras, isto é, em lhe calhando alguma Maria que quisesse desposar aquele esforçado e cada vez mais pálido e desfeito Dr. Silva, sempre deixaria uma reformazita aos seus pequenos Zé Marias.

No entanto, nos anos seguintes, nada aconteceu. Não foi diminuído. Não foi aumentado.

O Zé Manel, o Silva, o ex-Dr.-Silva sofria de terríveis insónias, preocupado. Bem se esforçava para não lhes dar importância, mas até os colegas começavam a não lhe perdoar as faltas de comparências nas almoçaradas semi-sindicais. Dedicava-se incessantemente aos livros comerciais, respirava a tinta permanente, impregnava-se de números, inscrevia linhas, bebia arquivos & documentos. E nada acontecia, de ano para ano. Não suportava a indiferença.

Quando percebeu o que acontecera, pediu desculpas ao tempo. Envergonhou-se por ter desconfiado do seu amigo. Esse seu amigo, que se encarregou de ir tornando o seu corpo mais etéreo, o seu nariz mais adunco, a sua vista mais cansada, o seu odor menos corporal, as suas articulações mais estafadas, esse mesmo amigo lhe proporcionou, passado tantos anos, a surpresa. Respirou descompassado, num assobio que os pulmões contraídos faziam silvar, como um fole acobreado atiça um fogo antigo, antes de se apagar de vez.

Eis então que, já cinquentão, ouviu do seu patrão (e os seus “misteres” também, numa aldeia de casas caiadas situada algures no firmamento longínquo):
— Ó Silva, a nossa companhia tem uma dívida de gratidão para consigo.

O Silva, aliás o Dr. Silva, baixou a cabeça quadrada, que pesava cada vez mais aos ombros rectos e ao corpo esguio.
— Reconhecemos todos os seus préstimos, ao longo de toda esta carreira. O Silva é um profissional à antiga, dedicado, meticuloso, pontual, organizado, leal. Como somos uma empresa que premeia o mérito, é hora de lhe oferecer uma prova substancial do nosso reconhecimento.
O coração do Silva rebentava de expectativa.
— Além de uma redução de vinte e um por cento no seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem do conselho de administração (e olhe que foi decisão unânime, ó Silva), diminui-lo de categoria profissional. Satisfeito, ó Silva?
A revelação deslumbrou-o. O corpo, já domado pelos anos, retorcia-se, a custo, é certo, de emoção não oleada. O tempo, afinal, não o tinha traído. O mundo sorria.

— A partir de agora, o Silva vai passar a ajudante do sistema informático da contabilidade. Afinal, o Silva é o melhor activo humano do activo imobilizado corpóreo. Para que possa assumir convenientemente essa responsabilidade, a partir de agora, o Silva gozará menos três dias de férias. Satisfeito, ó Silva?
Mais uma vez, mudou-se. Um dia largou mesmo o vício de jantar. Ao almoço, uma simples sanduíche, de preferência de mortandela, como se dizia lá na terra sem nome. Uma mine, a acompanhar, abrindo uma estreita fresta à nostalgia. Sentia-se mais leve, e de facto estava mais magro. A transformação física, com o passar dos anos, adquiria contornos fantásticos. Não se limitava a envelhecer, como qualquer tipo vulgar. As suas carnes (as poucas que teimosamente se agarravam como lapas aos ossos), pareciam dissolver-se. Ano após ano, Zé Manel ficava mais plano e quadrado. Ganhava um leve e curioso odor. Zé Manel, aliás o Dr. Silva, assustou-se quando temeu reconhecer uma fragrância com toques de tinta azul e celulose. Nos raros momentos em que a sua mente o poupava às suas obsessões contabilísticas, Zé Manel, o Silva, não se reconhecia ao espelho, intrigava-se e preocupava-se. O que só o fazia refugiar inclementemente nos segredos da escrituração mercantil.

Com o aumento dos horários flexíveis e o culto da polivalência, chegava a casa às onze da noite e levantava-se às três da madrugada. Com transportes urbanos e passes sociais incongruentes pelo meio.

A vida foi passando, com novos incentivos e prémios. “Satisfeito, ó Silva?”Aos sessenta e cinco anos, o ordenado equivalia a dez por cento do inicial.

Nada mal, o que o tempo, esse parceiro, havia moldado. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma batata suculenta do quintal dos vizinhos, daquelas que resistiam teimosas à urbe, numa atitude em que ele próprio si reconhecia, elas tinham, como ele, uma fibra de campónio firme, eram leguminosas catarinas-de-eufémia.

O corpo era um monte de rugas flácidas e tristes. O peso acumulado da responsabilidade foi alisando a postura.
Ancilosado, anguloso, fino, frágil, Silva foi chamado pela enésima vez, tantas quanto o amigo mais cúmplice havia permitido. Estafado, “o Silva” balbuciou qualquer coisa que, no melhor dos cenários, só ele conseguiu entender e cumprimentou, em modo de piloto automático, o presidente do conselho de administração.

O tempo, esse, ia passando por ele e cumprimentava-o, pois eram amigos de longa data.

Em jeito de balanço, para o Dr. Silva, o-aliás-Silva, o-aliás-Zé-Manel, o trabalho já estava terminado, o tempo tinha passado. Mais do que isso, seria armar aos cágados. Seria brincar de Deus.

E o dia, num capricho do tempo, chegou:

— Sente-se, Ó Silva. É preciso que se sente, ó Silva. Ó Silva, parabéns!!!!! Adeus salário, ele foi eliminado. A partir de agora, tudo o que fizer será “Responsabilidade Social”. Silva, a reputação da nossa companhia está nas suas mãos. Satisfeito, ó Silva?
Lasso, frágil, comprimiu e estendeu-se mais do que as leis da física permitiriam fora do fantástico mundo da narrativa. Perdoe o amigo leitor a inverosimilhança, mas era mesmo isso que aparentava. Sentia-se extenuado. Por fim, atingira todos os objectivos delineados. Tentou sorrir:
— Agradeço tudo o que a firma fez por mim. Mas quero passar à reforma.
(a saga continua)

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