18 de julho de 2008

Conto do tempo que passa


Sequer no dia da formatura, José Manuel Silva, aliás, Dr. Silva, entrou em euforias.

Por muito que insistissem os colegas do curso, resistiu aos convites para a jantarada de comemoração. Recusava quase sempre a estroinice académica, quando muito alinhava nos fins de tarde de cavaqueira alimentados a caracóis e a imperial, que quase o transportavam ao convívio na loja da aldeia. Não sendo boémio, nem por isso era desprezado, como seria de temer de um rato de biblioteca como ele. A bonomia alentejana, o seu físico frágil e cara de menino atraíam as raparigas, como se de um irmão mais novo se tratasse. As anedotas que contava com aquele sotaque arrastado e os relatos das pilhagens das galinhas lá na vilória da sua meninice divertiam os rapazes.

Não exultou na formatura, portanto, o Dr. Silva. Já os colegas, aliás os doutores, estavam ébrios de alívio e queriam vingar-se da maçada contínua que os anos de empinanço dos calhamaços de contabilidade geral tinham provocado na sua rotina pseudo-boémia. Anos e anos de borgas intercalados, quando não havia mesmo outro remédio, por curtos períodos de um profundo enfado, a empinar calhamaços e a enganar professores, que, as mais das vezes, fingiam não ver as cábulas que davam a volta à sala do exame.

Naquele dia, o dia decisivo, a expectativa era imensa. O silêncio que reinava nessa informal reunião geral de estudantes era interrompido por bramidos alarves de exaltação, à medida que a funcionária da secretaria pendurava nos velhos placares à entrada da faculdade, com exasperante lentidão burocrática, as compridas pautas finais. O grupo dos Abelardos até às Dianas urrou primeiro, seguiu-se o grupo dos Duartes até aos Fernandos, e por aí adiante, até que, chegada a vez da Zulmira, a algazarra era geral (embora a Zulmira não contribuísse para a dita, resignada a novo chumbo a Matemática I, que arrastava na asa como um peso pesado, desde que para ali entrara, há tantos anos que lhe tinha perdido a conta, o que não era de admirar, tendo em conta como se perdia nas outras contas). Uma vez sabido quem penaria pelo menos mais um anito no purgatório da faculdade e quem se livraria daquela tralha para sempre, a euforia começou (juntando-se paulatinamente os primeiros aos segundos, que haveria tempo para melancolias e arrependimentos, agora era hora de comemorar).

Não se sabe quem começou, mas deram por si, nas traseiras da faculdade, cobertas de erva bravia, participando num pequeno auto-de-fé. Numa pira pífia, queimavam com orgulho de cábula os espessos tratados de teoria do equilíbrio financeiro ou de direito comercial que penosamente tinham deglutido nos cinco anos antecedentes (ou, nalguns casos, menos raros do que a sociedade supostamente seria obrigada a tolerar, muitos mais do que cinco, impostos por tertúlias várias e estudos prolongados de complexas cerimónias de tunas e praxes académicas).
A turba queria era equilibrar-se no trapézio até ao fim do percurso, exercer o difícil ofício de conjugar a aprendizagem mínima do deve e haver dos balancetes com as noitadas na 24 a fazer olhinhos às mulheres dos futebolistas em estágio. Reinventar as propriedades farmacológicas do comprimido mágico de modo a que a pílula fizesse o milagre da multiplicação: responderia, por eles, a pílula, o mais depressa possível ao questionário sobre o equilíbrio entre o capital próprio e o passivo bancário, permitiria, a pílula milagrosa, suportar o batuque electrónico do Kremlin até o sol raiar. O dever, isso era por ora um compromisso a longo prazo: era assunto que deveriam lidar com a seriedade devida quando, inevitavelmente, atingissem a provecta, mas se Deus quisesse sempre longínqua, idade dos trinta anos. Quando acasalassem, tivessem o filho da praxe e assentassem na vida. Até lá, conviria passar pela faculdade com o mínimo dano possível. O que importava era o canudo que, aliás, nunca resgatariam das profundezas da Torre do Tombo.

Já Silva, aliás, Dr. Silva, no dia da formatura, sonhava intimamente com o momento em que o resgatasse, o canudo, das profundezas da Torre do Tombo. Para o levar consigo numa viagem, carinhosa e cautelosamente apertado debaixo do braço até ao apeadeiro da aldeia à beira de Serpa, a sua terra natal, onde a vida vai passando, a passo. Sobressaltada e ultrapassada, de quando em vez, a galope, pelas notícias dos vizinhos. É que, no Alentejo, as notícias dos vizinhos correm, muito mais depressa do que a vida.

Ele sabia, pensou de si para si mesmo no sonolento trajecto da Rodoviária, já com o rolo bem agarrado, que o Pinta-Pombos (que traste de moço, pihava os pombos dos vizinhos e pintava-os, marcando-os como seus), o Espanta-Lobisomens (esse era mesmo marado, passeava à noite o cemitério brandindo o estilete de pau), o Fuça-de-Porco (que teve o azar de nascer com a mesma cara da focinheira que se comia aos domingos na loja da Mimosa) e, talvez mesmo até, o Navalha-Afiada (esse era mais metido consigo mesmo, nunca olhava o semelhante nos olhos, passava os dia entretido aguçando a sua ponta-e-mola na afiadeira que ainda hoje o amolador estava para saber como lhe tinha sumido), que eles todos estivessem a beber a mine, como quem não quer a coisa, à beira do apeadeiro.

O Zé Manel, aliás o Dr. Silva (não vá o leitor ser ludibriado na caracterização do personagem principal pelo seu afinco nos estudos), também era rapaz de as beber, as mines da loja da Mimosa, esse minúsculo bazar, poiso de pequenos e graúdos para observar a vida passar a passo, por entre os raspanetes mimosos da dita cuja, também era rapaz de beber o seu copo com os amigos, só que era só nas férias de Verão, que é quando o bom filho da terra a casa tornava e arranjava vagar entre os tratados e livros oficiais de comércio. Os amigos da primária, pensava o Dr. Silva, aliás o Zé Manel, enquanto a camioneta rodava lânguida nas planícies douradas de sobreiro e azinho, lá se estariam entretendo com a garrafita a gelar as mãos, no apeadeiro da aldeia ao pé de Serpa (que, se tinha um nome, era segredo revelado em pequenino a quem nela tinha nascido e muito a custo partilhado com forasteiros).

Mas o Dr. Silva, aliás o Zé Manel, pensando para os seus botões enquanto a rodoviária planava sobre os pastos ressequidos e o cheiro a pó queimado teimava em intrometer-se pelo ar condicionado (que ia funcionando como a camioneta, muito a custo), passaria a toda a brida por entre os braços abertos dos amigos que o quereriam agarrar, num colectivo abraço orgulhoso e, como uma revienga original do avançado promissor que marca o seu primeiro golo pelos seniores do seu Benfica, escaparia aos colegas e abraçaria em lágrimas, e só a eles, os seus dois treinadores, os seus misteres, aqueles que tiveram olho para a sua carreira, aqueles que sempre acreditaram que o rapaz ia longe, para muito longe dali, para um lugar onde o tempo corresse mais depressa. Escapando às garras dos amigos, abraçaria, antes de todos, os seus pais.
Que diriam, na simplicidade da gente do campo, entre lágrimas contidas, “filho, estamos orgulhosos de ti. És um doutor, home. Agora cuida-te, que aquilo lá na capital é uma selva”.

E assim foi, sem tirar nem pôr.

Zé Manel, aliás o Dr. Silva, não precisou de se equilibrar no trapézio, queimou pestanas em vez de calhamaços contabilísticos em piras pífias, não alinhou em tertúlias colectivas, fintou os seus amigos de infância de braços abertos no campo do apeadeiro e foi a correr abraçar os seus misteres à casa chã pintada de cal, onde tinha vindo ao mundo, numa celebração do golo decisivo marcado pelo puto na estreia, em casa, num estádio a rebentar pelas costuras.

Até aí, tudo nos conformes. Tudo de acordo com o plano que tinha delineado. Tudo no tempo certo. O tempo corria, com vagar mas com acerto, como uma boa moda alentejana. O tempo era seu compadre.

Avisado de que Lisboa era uma selva, fez-se de novo à vida na capital, Zé Manel, aliás o Dr. Silva, apresentando-se à entrevista de emprego orgulhoso por dentro, mas bem modesto por fora. Como os melões da terra sem nome à beira de Serpa, bem feiinhos por fora, mas saborosos e suculentos por dentro, assim ia disfarçado, aperaltado e engravatado como um alfacinha de gema, o novo Dr. Silva, pronto a convencer a promessa de patrão.
(Continua)

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