26 de junho de 2008

Our NYC


Por três noites, fomos habitantes de Brooklin.
Era um quarto de um hotel de categoria quanto-baste. Como tantos outros hotéis dessa categoria. Bem posto. Bem composto. Mas um detalhe. O detalhe da opulência norte-americana. De um luxo prático e pouco elegante. Enfim, pouco europeu. Uma cama confortável, os pés assentes em alcatifa felpuda. Fofa. Luxuosamente fofa. Tão fofa que, por uma vez, qualquer mortal concede ao dedo mais mindinho do pé a relevância sensorial que ele não teria noutro lugar que não a de um hotel de categoria quanto-baste de opulência norte-americana, esfregando-se, o dedo mais mindinho do pé, contra a alcatifa felpuda. Arrepia, quando um qualquer mortal dá importância ao dedo mais mindinho do pé, esfregando-se na alcatifa felpuda do hotel quanto-baste de Brooklin. Faz-nos sentir em casa, o arrepio do dedo mais mindinho, faz-nos sentir como um cidadão de Brooklin, mais do que as ideias-feitas da Babel multi-cultural de Nova Iorque, mais, se quisermos ser mais blasées, do que um connaisseur que prefere a crueza autêntica de Brooklin ao status de um qualquer endereço nas redondezas da quinta avenida.
A cama, larga. Tão confortavelmente larga como só um hotel quanto-baste de um qualquer subúrbio norte-americano. Os lençóis responsavelmente entreabertos convidando ao repouso de um executivo temporária ou definitivamente solitário, os lençóis de boca aberta convidando sem pudor os amantes apaixonados que lhes calham em sorte, por obra fortuita do sistema informático a que Anny, a negra das ancas largas, dá vida carregando na tecla do computador da recepção. Pede-nos o passaporte e o endereço do próximo destino e, ao mesmo tempo, serve-nos, com uma familiaridade americana, os biscoitos caseiros ainda agora saídos da fornalha. De amora. Fumegantes. Just baked, folks.
Voltando à cama. As camas dos hotéis americanos quanto-baste são tão convidativas. Lençóis engomados dizendo boas-vindas. Para que corpos, solitários ou emparelhados, se enfiem, respectivamente aliviados ou ansiosos, dentro deles. Uma multidão de gente em fila indiana aguardando enfiar-se dentro deles. Todos se sentindo em casa. A casa em Brooklin. Todas as pessoas com corações retemperados quando se enfiam no lençol de boca larga e aberta, a sorrir convidativo. A ocuparem a vaga da fila indiana, uns atrás dos outros, a vida de uns seguida da vida de outros, na casa em Brooklin. Corpos a ocuparem os espaços deixados por outros corpos.
Que entretanto partiram sabe-se lá para onde, eles que apenas há umas horas aqueciam aqueles lençóis de boca aberta. Onde sempre queremos voltar, não queremos sempre voltar a casa? Depois do passeio a 42º C por Central Park. Do desafio da empregada estafada do Starbuck’s da vizinhança, que se surpreende porque não queremos trabalhar em Brooklin se respondemos que sim, gostamos de Brooklin e de Nova Iorque. Do jantar no Grano’s na Village, em que o chefe siciliano nos sicilia em espanholês porque não acredita que um português fale italiano. Mexilhões ao vapor temperados com um branco Friulia Veneto. Lá fora, fumando o cigarro proscrito, a tempestade aterradora irrompe sem aviso. Volta-se à mesa e acaba-se o macarrão com tinta de choco e frutos do mar. E agora, depois da tempestade, apetece voltar a casa, para o sorriso provocante dos lençóis. Apetece voltar, no dia seguinte, depois do almoço no grego, no Taverna, em que ouvimos com discrição, o produtor discutindo com o agente os termos do contrato da tournée pelos cinemas de bairro do novo filme daquele realizador-promessa ainda obscuro. E o que seria se o conhecessem na Europa, suspiram eles entre dois copos de Merlot, brindando. Desfeitas as dúvidas do agente sobre os direitos que possuiria o produtor. Depois do périplo à deriva pelas lojas de autor na Village, bordadas a autocolantes de apoio a Obama. Do minúsculo cemitério judaico luso-hispânico. Dos frapuccinos. Dos mendigos bem-falantes. Do jazz em Central Park. Do nosso cantinho secreto no Battery Park. Das corridas no metro. Das saudações de desconhecidos no metro. Da perseguição aos patuscos school bus, amarelos como os city cabs. Das caminhadas.
Sobretudo depois disto tudo, sabe bem regressar a casa. À nossa casa de Brooklin.
Mas ao quarto dia, partimos, deixando as nossas vidas para trás, cedendo o lugar ao próximo sujeito da fila indiana.
Partimos à hora marcada na Fung Wah Bus, carreira de Chinatown a Chinatown, a de Nova Iorque e a de Boston. Só para conhecedores. Chineses e estudantes, nem um turista. Não há nada que um tuga que se preze mais aprecie do que uma boa pechincha. E esta carreira de chinês sai-nos por um quarto das regulares. Entramos, de sorriso rasgado pelo negócio da China e damo-nos por espertos: o autocarro chinês é um casulo igual a outros tantos. Damos as boas tardes ao motorista de olhos muito horizontais, que nos responde solidente com um good aftelnoon fol you too. O autocarro pejado de saquinhos-para-vómito com instruções em ideogramas mandarins. Um odor indistinto e quase neutro, a meio caminho entre o aceitável e o repugnante.
A cabeça estala, em protesto. Abandonámos para trás o corpo moldado à cidade. E a cabeça grita. Deixámos para trás a cidade que se moldou ao nosso corpo. Deixámos para trás o território desbravado, que se torna incompreensivelmente familiar. Uma metamorfose progressiva de uma geografia desconhecida numa geografia íntima. De súbito, traímo-la, sem razão, a nossa geografia íntima. E a cabeça, naturalmente, estala em protesto. E partimos, a silhueta altiva da cidade que arranha os céus a acompanhar-nos, não nos abandonando por quilómetros intermináveis, acusadora, impositiva. Até que desiste, desaparece de vista, põe-se a milhas. Sem transição, entramos no território impoluto e ideal das florestas e lagos do Connecticut, das suas casas de madeira e barquinhos de vela em cais toscos e naïves. Tão queridinhas, estas casinhas de estrunfes. Uma pausa idílica que devemos aproveitar para inventar uma nova casa, na Nova Inglaterra. A terra das baleias e dos portugueses que as perseguiram. Moby Dick. Enquanto não a caçamos, a cabeça continua a protestar, naquele acampamento oriental em forma de autocarro, a caminho de um novo recolher obrigatório. Fecho os olhos. Procuro repouso. E a primeira imagem que me atormenta a cabeça pungente de dor, vista de Brooklin, é Manhattan, a que nunca dorme, embalada pelo Hudson.

4 comments:

Garf 27 de junho de 2008 às 17:59  

É por textos como este que o pessoal continua a passar por aqui, perdoando os longos períodos que por vezes decorrem entre um post e outro...

Anónimo,  30 de junho de 2008 às 22:21  

Boa!
nice!
j.g.

Garf 1 de julho de 2008 às 14:44  

Ogait: aconselho "passagem" pelo garf para conhecimento de desafio lançado pelo wvc e respectiva resposta. O post é o do "Tibério".

Anónimo,  2 de julho de 2008 às 12:46  

Adorei e estou cheiinha de vontade.
Beijo daquela que te lê mas nunca te escreve.

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