23 de julho de 2008

Conto do tempo que passa (o dramático epílogo)

O patrão não compreendeu:

— Mas ó Silva, sente-se bem, ó Silva? Agora que está sem salário? Não está satisfeito? Falta pouco para que tenha de pagar para pertencer ao quadro. Desprezar décadas de esforço dedicado? Não está satisfeito? Ó Silva, pense lá? Reconsidere! O que me diz?

A emoção e o cansaço acumulados impediram qualquer resposta.O Silva afastou-se, sem ruído, como folhas voando ao vento. O peito sucumbiu ao peso dos anos. A tez perdeu qualquer cor. Os membros recolheram. A estatura aplanou de vez. O corpo despiu-se da humanidade, tornou-se físico, concreto, diminuto, quadrado.

Silva, ou o que restava dele, não quis pensar em mais nada. Num último estertor do homem que tinha sido, fez por não sonhar com uma sonolenta viagem da Rodoviária e com o Pinta-Pombos, o Espanta-Lobos, o Fuça-de-Porco e, mesmo até, o Navalha-Afiada. Que estariam à sua espera, bebendo a mine, como quem não quer a coisa, à beira do apeadeiro de aldeia celeste, a caminho de sabe-se-lá-onde, onde o raspanete mimoso de uma Mimosa os esperasse esperançosa. E uns pais o mimariam ainda mais, pais que, com o tempo, pareciam avós, aliás, bisavós, aliás trisavós, aliás, a origem de todas as coisas.

O Dr. Silva, aliás, o Silva, aliás, o Zé Manel, aliás, o-não-sei-o-quê, desistiu.

A transformação, com o tempo, completou-se. O chefe pegou no livro mercantil, folheou-o distraidamente e colocou-o (ao Silva, aliás, ao livro) na prateleira. E para ali ficou, para sempre.


1 comments:

SC 27 de julho de 2008 às 17:44  

E assim o tempo passou.

Contozinho amargo, uh?!
Respiro fundo.

Até ao próximo post! :)

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