23 de abril de 2008

Dia Mundial do Livro

Lisboa, Eurásia, 2084.

O mundo está dividido em três países, Eurásia Oceânia e Amerísia, em guerra perpétua entre si.

O Partido tomou conta de todos os aspectos da vida numa incessante tentativa de erradicação da individualidade.

A administração pública encontra-se repartida por quatro grandes ministérios – o Ministério da Verdade, que controla a imprensa, o entretenimento e a educação, o Ministério do Amor, que mantém a lei e a ordem, o Ministério da Paz, que se ocupa das questões da guerra e o Ministério da Abundância, que lida com a economia e finanças. Até a linguagem dos cidadãos é regulada pelo Partido em prolixos regulamentos, despachos, leis e instruções administrativas. As conversas entre pessoas são desencorajadas, em benefício da escrita, para que de tudo fique registo. Apenas a informação escrita é reputada como verdadeira, pois só esta permite uma reprodução fiel e autêntica. A Polícia Intelectual tem como função vigiar e prevenir os crimes de pensamento e manter a cidade no mais absoluto silêncio. Cartazes espalhados em pontos estratégicos, desprovidos de quaisquer imagens, reproduzem slogans imperativos: “A Guerra é a Paz”, “A Liberdade é Escravatura”, “A Imagem é Ilusão”, “O Livro Educa”.

Uma massa uniforme de cidadãos adormecidos folheia passivamente os livros editados e controlados pelo Partido. As ideias mais absurdas encontram eco unânime nos homens desde que constem de uma qualquer brochura. Se está escrito, é verdade. A humanidade deixou de pensar criticamente, mergulhado nas letrinhas pretas em fundo branco, alheando-se do mundo físico que a rodeava.

José Silva encontra-se à porta do prédio onde vive e observa o cartaz da esquina. Em letras garrafais: “A Escrita Tudo Regista”.

Abre a porta e o chão do hall de entrada está pejado de cartas, jornais, panfletos, que o carteiro atirou pela fresta da porta. A sua máquina de fax cospe, como sempre, tinta preta em golfadas mecânicas. O rolo de papel já está no fim, uma única página de grande envergadura enrola propaganda governamental e ordens aos cidadãos. A última instrução é a nova versão do Acordo Ortográfico, que impõe regras universalmente aceites sobre a forma como os habitantes da Eurásia devem escrever. Quaisquer discrepâncias são severamente controladas pela Polícia Intelectual e conduziriam o cidadão rebelde ao cárcere.

José Silva notifica o Partido, pela mesma máquina, de ter entrado no seu domicílio.

Vivia uma vida dupla.

Na aparência, parecia respeitar acriticamente todos os ditames impostos. Mas vivia um conflito interior que o dilacerava. Simplesmente acreditava no que via e ouvia.

No entanto, intimanente descria do que lhe davam a ler, se não encontrava correspondência com a realidade observada. Sentia-se diferente. Receava pela sua saúde psíquica.

Evidentemente, não poderia contar a ninguém a aflição que a noção distorcida que tinha da realidade lhe causava. Nem sequer à sua família, formada pela sua mulher e os dois filhos, de cujas mãos todas as noites arrancava, a muito custo e por entre choro convulsivo, os seus inúmeros livros infantis, quando chegava a hora de dormir.

A sua percepção do mundo tinha começado a mudar quando, num antiquário situado num bairro de má reputação, adquiriu um aparelho do início do século. Como membro do Partido, gozava de uma precária liberdade de movimentos que não era autorizada ao cidadão comum. Era uma pessoa curiosa, e um objecto estranho, uma espécie de caixa grande de plástico com um vidro à frente e uns botões de lado, atraiu a sua atenção. O vendedor não fazia ideia do que se tratasse.

Visitou o seu avô, no asséptico lar do Estado onde este estava depositado até ao fim dos seus dias. O avô, um poço sem fundo de sabedoria ancestral, explicou-lhe, por apontamentos a lápis no velho bloco de notas - não fosse um agente da Polícia Intelectual estar à escuta - que, pela descrição do neto, deveria tratar-se de uma televisão. Aparentemente, este objecto antigo conseguia reproduzir as imagens e os sons de acontecimentos ocorridos, fosse a que distância fosse. O aparelho tinha sido inventado na segunda metade do século XX, tanto quanto sabia e lhe contou o avô, como antes lhe havia contado o avô do seu avô. Sorrateiramente, anotou também no bloco que bastaria ao neto adquirir um vídeo, um aparelho que gravava as emissões da televisão, para que pudesse ver, com os seus próprios olhos, que a Humanidade tinha chegado à Lua. Claro, desde que conseguisse comprar uma cassete bem conservada.

À socapa, apagaram os recados escritos com a velha e gasta borracha que o avô guardava dentro do seu maço de tabaco (adquirida por uma fortuna, tal como o lápis, no mercado negro, pois que o Partido não autorizava quaiquer escritos que não deixassem rasto).

José não descansou enquanto não encontrou e comprou, a dinheiro vivo e sem recibo, obviamente, o aparelho de vídeo no mercado negro. Com cada vez mais frequência, e aproveitando-se da sua condição de membro do Partido, que suavizava a vigilância da Polícia Intelectual, foi-se infiltrando nos meios obscuros do mercado negro. A pouco e pouco, foi ganhando a confiança de sujeitos marginais, e acabou por ser admitido num círculo secreto de sujeitos discretos que, em caves escuras de bairros degradados e marginais, observavam imagens de filmes antigos e programas de televisão gravados.

Numa das sessões, visionaram um documentário sobre um escritor da antiga Grã-Bretanha, um tal de George Orwell, que havia escrito um romance muito popular, intitulado “1984”. Esse romance, certamente uma obra encomendada pelo Estado, conseguiu convencer os cidadãos de que um mundo dominado pelo audio-visual seria um mundo de alienados, controlados pelo poder político. Ironicamente, tratava-se de um livro hoje proibido pelo Partido.

Mas aquele grupo de subversivos estava decidido a combater o jugo do mundo irreal difundido pela palavra escrita. Tinham jurado, secreta solenemente, promover clandestinamente o audio-visual e combater, com a vida se preciso fosse, a literacia dos cidadãos.

2 comments:

Carolina Mendes 28 de abril de 2008 às 16:37  

'Fahrenheit 451' ao avesso?
:)
Adoro isso aqui.
Continue você, digo com todo meu sotaque, também a escrever.

Beijo da terra dos papagaios.

Anónimo,  30 de abril de 2008 às 16:14  

Mori...andas inspirado...

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