26 de dezembro de 2008

Countdown

Faltam dois dias. Com estes e outros amiguinhos ansiosos por nos conhecer.

http://www.globalangels.org/fundraiser/Guludo/

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Hit the road, jack


Faltam 2 dias...

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23 de dezembro de 2008

Espírito de Natal

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Countdown


Faltam cinco dias!

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19 de dezembro de 2008

Hip, hip...


David Byrne no Coliseu a 28 de Abril.

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1 de dezembro de 2008

Melting pot

Nesta grande Lisboa que eu amo há: uma tímida e explosiva virgem gótica, um jovem beirão assustado com a capital e voyeur por via das novas tecnologias, um louco-sem-abrigo-mendigo que apregoa tanto Confúcio como Nietzsche, um jovem padre que ama Bauhaus quase tanto quanto teme a Deus, uma senhora taxista que polidamente aldraba turistas ao ritmo de Grieg, um preto que odeia brancos mas também pretos sem raízes, uma esguia mulata que não se decide se ser preta se ser branca, um executivo norueguês que aterra em Lisboa com o peso de uma vida perfeita, um skinhead que tanto detesta pretos como adora animais, um romeno pragmático que trafica carne branca, uma doméstica brasileira que sobe, a custo, na vida, um contabilista então-que-tal-tudo-bem?-tudo-bem!, uma velhota que sofre das cruzes porque não quer sofrer do marido que Deus tem, um fadista que faz tours em lares de terceira idade, tias afogadas num mar de piedade e redenção, mercearias derrotadas por shoppings centers, shopping centers derrotados por hipermercados, hipermercados que democratizam o consumo de uma classe média em ascensão, a rua esquecida por computadores, colégios privados e condomínios fechados, afectos construídos por sms, telemóveis, portanto, facebooks, hi 5's e quejandos, é claro, o vídeo é uma arma, juízes sós e ministérios públicos, jovens que queriam mudar o mundo e se rendem ao gourmet e aos prazeres eternos da juventude, inconsequentes políticos bem intencionados, cachupa e pescada-de-rabo-na-boca e túbaros e caracóis, a luz alfacinha, o bolo rei ou o bolo raínha, o kremlin, o kubo ou o incógnito, alfama em guerra com alcântara, a buraca que não gosta do califa, hei-de encaixar o mergulho nesta amálgama ainda não sei como, também há os irreverentes criativos que não apreciam pragmáticos engravatados e vice-versa, depois os guetos e subsequentes guerrilhas escolares, até desembarques de refugiados com que ninguém contava, um armagedão à escala lusitana e, sobretudo, um punhado de amores possíveis e uma mão cheia de amores impossíveis. Talvez até um terramoto, isto fica por decidir. Tudo isto há na grande Lisboa que eu amo. Sobre tudo isto falarei, porque sim, e tudo isto resulta numa grande salganhada e o consequente o cabo dos trabalhos. Et pour cause, en ce blog il y a une pause.

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27 de novembro de 2008

Eno & Byrne are back

Download gratuito em http://www.everythingthathappens.com/

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Queridos 80

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18 de novembro de 2008

) (

Terminado o encontro fortuito, que um técnico apelidaria por coito, de modo a abarcar não só o processo, mas todas as possíveis consequências, ele virou-se para a esquerda, ela para a direita.

Os amantes deram as costas um ao outro no leito e os seus corpos formaram, talvez até conscientemente, uma simbólica borboleta )(

A respiração de ambos foi aplanando e acabaram por embalar na sinfonia colectiva e imutável da cidade, um canto suave, abafado quem sabe em que medida pelas venezianas da janela e pela culpa.

Ficaram assim umas boas duas horas, naquele silêncio recheado, até que ela se levantou com elegância, num capricho de leveza ou num impulso de dignidade, amputando a borboleta da sua asa direita )

Com aquele passo de dança, certo é que fechou um parêntesis de beleza efémera e retomou as rédeas da sua continuidade essencial.

Ele foi deixando-se estar, permanecendo ainda no lado de cá - ou de lá, não é a verdade senão perspectiva? - , até que, com um suspiro, de dormência ou de alívio ou de aborrecimento ou de desilusão ou de nostalgia, se levantou por seu turno, dando o golpe de misericórdia na borboleta mutilada.

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15 de novembro de 2008

Let's look at the trailer

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11 de novembro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Pensa na primeira vez que respiraste: um vento imparável que te entrou pelos pulmões, te assoberbou de espanto e que devolveste com um furacão digno do génese. Que primeiro e marcante berro soltaste! Ainda não vias nada, mas revoltavas-te contra o frio da sala de parto, contra as mãos ásperas do médico que te seguravam enquanto choravas como uma hiena endiabrada, essas mãos que depressa desistiram para te entregar ao regaço sanguíneo da tua mãe, calando-te, permitindo que ouvisses pela primeira vez a voz vermelha, forte, do teu pai finalmente emocionado, por tua causa.

Já eu, recusei-me a respirar.

Não houve médico que me segurasse.

Não conheci o colo da minha mãe.

Não faço ideia onde parava o meu pai.

E não respirei.

Nasci apressado, sem aviso, um mês antes de tempo. Olhando para trás, o meu nascimento prematuro é uma metáfora perfeita do que seria o resto da minha vida: uma ultrapassagem a galope, passando ao seu lado. Vi a vida, mas não a agarrei. Toda a minha existência procurei recuperar o momento primordial da minha existência, o momento de um tal assombro que os pulmões, dotados de auto-arbítrio, se recusaram a funcionar.

Consegui-o uma única vez, tão brevemente como nos primeiros minutos da minha vida, no exacto instante em que me cruzei com um rosto frágil, que parecia caber na palma de uma só mão, um sorriso triste, uns olhos feitos de anis.

Por esse momento, tão breve como um relâmpago, fiquei sem fôlego. Mas ele parece durar para sempre, como a chaga de uma guerra para a qual fosses alistado sem a quereres combater.

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9 de novembro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Lá no alto, um deus pequenino e solitário dá uma atmosférica dentada em algodão-doce:

Tal deus menor abocanha a nuvem, saboreia, degusta, fura a nuvem. Com a insolência que só a infância permite, espera,

(Faz figas),

Que alguém, lá em baixo, entenda o seu gesto,

Temerário.

Por seu turno, cá no solo, um puto, metido consigo mesmo, dá uma rasteira dentada no insecto:

Tal puto, abocanha, matreiro, perniciosio, uma formiga. Com a insolência que só a infância permite, espera,

(Faz figas),

Que alguém, lá no alto, entenda o seu gesto,

Temerário.

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7 de novembro de 2008

Retalhos da vida de um consultor

É sexta-feira. Quando chegar a casa, Sérgio vai largar a mala no sofá, despir a farda de consultor fiscal, abrir o frigorífico para servir-se de um vodka tónico (Black Goose, não um vodka qualquer). Não, não vai, porque a bebé exige atenção, Sérgio muda-lhe as fraldas, dá-lhe o biberon e fá-la arrotar. A miúda adormece quando a mãe chega. Jantam. A miúda acorda. A mãe trata da arrumação e Sérgio embala o bebé. Este adormece. A mulher deita-se. Leva a miúda consigo. Embora ainda não tenha quarenta anos, Sérgio sente-se um veterano extenuado, um resto, uma sobra. Diz à mulher que já lá vai ter, faz um desvio no escritório e liga-se ao ITunes.

Nesta noite, Sérgio vai ouvir a música que fez da sua adolescência um período vibrante. Com os fones high-fidelity nos ouvidos, Sérgio grita os versos toscos de Rockaway Beach. Com esta música, Sérgio é transportado para os catorze, em que era conhecido por S Ramone e tinha formado uma banda com um pessoal punk, da Linha.
Estamos, pois, em 1985. Sérgio está de pé, em cima do divã do escritório, e toca uma guitarra imaginária. Faz pose de rock-star, dá saltos mortais, chuta almofadas e atira-se contra a parede. O som do seu instrumento de vento é real. Quase um vendaval. No poster que imagina pregado na parede branca, Joey Ramone (o genuíno) levanta o polegar em aprovação. O concerto é electrizante, inesquecível.

Na porta do quarto um toc, toc, que Sérgio não ouve. Quem pode interromper um solo arrasador como aquele? Quem pode parar a fúria punk de S Ramone, o prodígio da guitarra?

S Ramone, o menino lingrinhas e cheio de borbulhas, sente-se o tipo mais poderoso do universo. Agora, só falta aprender a fumar e entender qual a graça do sabor amargo das cervejas que o seu irmão mais velho costuma emborcar, umas atrás das outras.

Como rock star, sabe também que tem o engenho, e sobretudo o descaramento, para falsificar a assinatura do pai naquele desastroso teste de matemática. Afinal, para que carga de água serve a trigonometria? Um guitarrista não precisa de ir à faculdade, certo?

Sobre o ritmo de Rockaway Beach, S Ramone canta versos criados por ele, que surpreendentemente desencantou sem esforço de um canto obscuro da sua memória. O puto já escreveu canções sobre o fim do mundo, guerras nucleares, pais repressores e professores decapitados em salas de aula. S Ramone acredita no sucesso. Vai vender milhões de discos.

Troca a sua guitarra eléctrica de faz de conta por um violão de mentira. Como profissional do show business, S Ramone sabe que toda a boa performance precisa de um momento romântico.

Essa canção, a única que o Joey Ramone do cartaz não aprovava, foi composta para a Alexandra do 8º B e para a rapariga da capa da primeira Playboy que Sérgio tinha tido coragem de comprar, de cujo nome naturalmente não se lembrava, porque não era o nome que estava em causa.

S Ramone toca lúgubre. Canta o amor, a dor e o sangue escorrendo pelos corredores da escola. No refrão, narra uma cena de porrada no recreio. Até que o vencedor do duelo de boxe categoria pesos-abaixo de pluma (ele, evidentemente), entrega uma rosa para a Alexandra do 8º B ou para a rapariga da Playboy (dependendo da versão).

S Ramone atira a guitarra para a público. Agradece os aplausos e salta do divã. Anda de um lado para o outro, ouvindo a turba ululante ao som de “só mais uma, só mais uma”. Salta de novo para o divã e empunha a sua guitarra vermelha (era vermelha, pois).

Agora, voltamos a 2008. S Ramone transformou-se em Sérgio. Ele já sabe fumar e trata por tu o sabor amargo da cerveja. Em compensação, perdeu, totalmente, o contacto com a Alexandra do 8º B e nunca mais encontrou a sua velha e gasta Playboy.

Mas hoje, quando Rockaway Beach despertar a sua alma gasta, Sérgio vai saltar no divã e dedilhar o ar mais uma vez. Até que a mulher (de boca aberta de espanto) e a filha (de boca aberta de gargalhadas) irrompam escritório adentro, pensando se é mesmo aquele o seu marido e pai.

(para o chefe bacano)

Até para a semana. Ou até sempre.

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3 de novembro de 2008

Um conto do imprevisto

(Cont.)

O cavalo, entretanto, acaba de engolir a pasta verde que lhe enchia a boca e agora, por um interminável segundo, volta a olhar, sem ver o horizonte. Baixa a cabeça com parcimónia (movimento que é seguido pelas moscas que não há modo de lhe largar as orelhas), esfregando a boca no chão húmido para se livrar de umas flores bonitas que lhe haviam ficado entaladas entre os dentes.

Amélia estava prestes a morrer uma vez mais quando o leitor faz uma pausa no drama, deixando-a suspensa, mas nem por isso expectante, consciente do seu inevitável destino. Marcando a página com intenção de lá voltar, o leitor fecha o livro e abre um exemplar raro da revista “O Cruzeiro”, saída ao prelo nos idos de 16 de Abril de 1878. Faz fé no que agora lê, com a consideração que lhe deve o prestígio do mestre Machado de Assis: numa crítica aí publicada, Machado de Assis, das alturas do Olimpo Literário que conquistou, profere a lapidar sentença, publicada preto no branco e constante de folhas: «“O Crime do Padre Amaro” é imitação do romance de Zola, “La Faute de l’Abbé Mouret"».

Em consequência, o leitor abandona definitivamente a leitura de “O Crime do Padre Amaro”, faz um esgar de desprezo e solta o livro às labaredas da salamandra com que aquecia os pés, condenando Amélia a uma morte desta vez diferente. Antes de sucumbir às chamas, Amélia pensa como desejaria conhecer a irmã francesa inventada por Zola e de quem nunca antes tinha ouvido falar.

Francisco Mendes está prestes a sair do bar quando, numa prova de que a vida é feita de acasos e imprevistos, a equipa visitante, de fracos pergaminhos, realiza uma daquelas proezas de que o futebol é fértil e que fazem dele um desporto de multidões. Contra todas as probabilidades, o trinco dos visitantes, cujos dotes técnicos se resumem no justificado epíteto de “carrega-pianos”, faz um movimento de ruptura que deixa os bem mais dotados atletas da equipa caseira pregados no relvado, de tal modo que o central da equipa hóspede, ferido no orgulho, derruba a pés juntos o adversário. Livre directo, último minuto da partida. Francisco Mendes olha para o televisor e dá um último gole no scotch. O livre é bastante mal cobrado mas o esférico é lançado numa improvável órbita que desafia as leis da balística. A bola ressalta nas costas de um defesa, o guarda-redes não consegue calcular a trajectória ziguezagueante, indo o esférico embater com estrondo na trave e de novo numas costas de um jogador caseiro, agora do guarda-redes, entrando consequentemente na baliza defendida pela equipa da casa e fixando o resultado final: um inacreditável zero um.

O lance incaracterístico e improvável é tomado por Francisco Mendes como um sinal: sai do bar disparado para a estação de comboios, nem sequer passando pelo apartamento para recolher os seus parcos haveres, e aí compra um bilhete só de ida para o apeadeiro transmontano.

A composição atravessará, manhã cedo, um pasto onde um cavalo velho vê a refeição interrompida pelo ruído do monstro circulante. Francisco Mendes, nesse preciso momento, está à janela, mirando o vazio com um olhar fundo, que parece preenchido de tudo o que não vê, como se os montes que lá ao longe o contemplam impregnassem o mirar humano do sentido da insignificância. Repara, contudo, na figura triste de uma pileca e parece-lhe (não sem incredulidade), que o animal baixa a cabeça à sua passagem, como que cumprimentando com sábia familiaridade um ser que, bem vistas as coisas, com ele partilha muito mais profundas semelhanças do que as anatómicas diferenças que aparentemente os separam.

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31 de outubro de 2008

Retalho de um conto

Um velho cavalo rumina, rodando as largas mandíbulas em círculos. O cavalo tem cara de panorama. Olha para o vazio, carrega consigo um olhar dir-se-ia sem fundo, parece preenchido de tudo o que não vê, como se os montes que o contemplam impregnassem aquele olhar equídeo do sentido da insignificância. Por um segundo, parece notar alguma coisa, fracção de tempo em que pára de mascar a erva fresca, mas logo, percebendo que era a mesma árvore de ontem bailando agora com a brisa, retoma o seu eterno afazer com o vagar que os seus dentes gastos exigem.

Por seu turno, Francisco Mendes pede um whisky duplo ao balcão do Dez. Essa é a medida que concede ao tempo até que algo aconteça. Infelizmente para Francisco Mendes, o tempo está-se nas tintas para o seu whisky, o Dez não é um diner de Los Angeles, nem ele é figurante de um filme de série B e, como tal, finda a bebida, nenhum jovem casal de ladrões de trazer por casa ameaçará a freguesia brandindo pistolas e gritando “Everybody be cool, this is a robbery!”, como, num aparente paradoxo, Francisco Mendes desejaria. Francisco Mendes chegou a chefe de contabilidade em esforçados vinte e cinco anos de carreira. Nada de novo se passará neste fim de tarde, à parte talvez mais uma dose dupla com que medir o tempo e mais um jogo europeu que será transmitido no ecrãs reluzentes do Dez.

O whisky, o balcão do Dez e o futebol são mundos desconhecidos para Amélia, rapariga na flor da idade, viçosa, morena e alta. Amélia, ela, não faz mais nada senão representar à risca o seu papel, sempre que algum leitor (e não são poucos) resolve ler o clássico do século XIX, ressuscitando-a. Quando tal acontece, segue o destino que o escritor lhe traçou: vive um amor proibido, engravida, retira-se em consequência para uma quinta nos arredores da cidade sob a vigilância de uma beata fanática, redime-se à custa do único padre que se comporta de acordo com os cânones, até que volta a morrer, do mesmo parto, para percorrer igual via sacra sempre que alguém volte a folhear o romance. Uma adaptação cinematográfica quebrou fugazmente a sua monotonia, mas, como é sabido, o formato audio-visual é efémero e, de qualquer modo, o filme agudiza, em vez de amenizar, a fama de devassa que carrega como uma cruz. Ninguém mudará a sua sorte, o autor finou-se há uns bom cem anos.

(Cont.)

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28 de outubro de 2008

E o Natal está quase aí ao virar da esquina...


Ainda não li, mas é como se já tivesse lido. Recomendo, sem medos. Este livro vai para o sapatinho de muitos amigos. Aguardo autógrafo, lá para Dezembro.

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26 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Máxima tardava a responder. Nunca o chegou a fazer. Ia abrir a boca e assim a teve de deixar ficar, suspensa pela expectativa. Sentiu que voava, num improvável salto a galope. De boca ainda aberta, saltou do banco, sem apoio, tentando agarrar-se a qualquer coisa, a sua mão não conseguindo melhor do que fechar-se no ar vazio. A boca sempre aberta, fechou os olhos com força, a mesma força que gostaria de usar para fechar os ouvidos, se ao menos Deus tivesse assim concedido ao homem mais essa vantagem competitiva. Tal serviria para calar a singular orquestra composta de inconcebíveis guinchos de pneumáticos e terríveis acelerações de motores pairando no vácuo. Seguiu-se um som surdo de uma pancada, o baque da sua própria fronte contra uma parede de vidro estilhaçando-se, seguido de um silvo crescente, o som do seu corpo deslizando com o impulso por entre as finas moléculas da atmosfera. Transformou-se pois num projéctil humano disparado para o vazio, de tal modo que naqueles instantes nada via para além de um túnel de luz ofuscante à sua frente, sem que lhe vislumbrasse fim. Naqueles intermináveis momentos voadores, sentiu-se, como nunca mais se sentiria, independente, feita de si mesma, incomensuravelmente distante de tudo.


Pausa. Vazio. E pausa. E vazio.

Algures, o ruído de metais retorcidos por uma pancada brutal conseguiu penetrar de novo na sua consciência.

Voltou a si deitada num cama húmida de urzes, olhando para o cadáver de um automóvel, rodas viradas para o firmamento que não cessavam de girar, fumos saindo de entranhas mecânicas quebradas. Em contraste com a visão dantesca, o que agora ouvia era apenas o gotejar tranquilo da chuva morna que se esvaía, como ela, no cómodo tapete de musgo e urzes a que tinha ido parar.

O terror imobilizava-a. Não lhe doía nada, ainda que sentisse o gosto doce do sangue que lhe descia do nariz até aos lábios por acção lenta da gravidade. Deixou-se ficar quieta, fazendo por crer que tudo aquilo era um sonho.

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20 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

“Ao menos quando ela chegar não se vai pôr com temores de ser vista por coscuvilheiros. Quando está receosa fica danada, faz-se difícil”, pensou.

Se é que ela viria. Henrique pensou se estava impaciente por que ela viesse ou porque não aparecesse.

Olhou para o seu relógio: pouco passava das sete, mas o breu era opaco. O Outono tinha chegado sem aviso.

“Dou-lhe mais um quarto de hora”, disse para si próprio, “depois disso vou para casa e ela que se amanhe com quem lhe faça outro filho, a começar pelo impotente do marido, e que sustente o que já por cá anda. De qualquer modo, começa a perder o viço”, num monólogo consigo mesmo.

O relógio da vila tinha acabado de soar as sete e um quarto e Henrique, determinado em cumprir a jura que se havia feito, rodava já a chave da ignição, quando lhe pareceu vislumbrar alguém aparecendo por detrás da esquina do edifício. Desligou o motor e apagou as luzes. Seria ela?

Ela viu-o e apressou o passo na direcção do automóvel, rodando o pescoço para trás de quando em vez, à cata de testemunhas inoportunas. Não vendo ninguém, chegou-se com cuidados ao grande Mercedes preto.

Henrique saiu e abriu a porta do lado, um tudo-nada antes de tempo, precavendo Máxima da impaciência que a espera tinha provocado ao amante. O lavrador não estava habituado a depender dos outros.

Já Máxima, mãe solteira na época em que elas não existiam senão por obra do Demo, dependia totalmente dos outros, particularmente do pai do seu filho.

Dependia de Henrique Redondo e de quem lhe calhasse por sorte ao caminho: a propósito, Máxima não podia revelar ao seu amante que a demora devera-se aos avanços atrapalhados do director da fábrica a que ela fingia ir resistindo, num jogo do gato e do rato em que a presa é, evidentemente, o suposto caçador.

Ao longe, no ponto onde o caminho de terra se unia à estrada municipal remendada de asfalto, passou um vulto. Os amantes esperaram em silêncio, ansiando que o sujeito não notasse o carro camuflado sob a copa baixa dos pinheiros mansos. O vulto entrou no seu carro, estacionado no parque da fábrica, ligou o motor e fez-se à estrada.

“Quem era aquele?”, inquiriu secamente Henrique.

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18 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Agora é este o cenário: um shopping center de subúrbio com quarenta anos.

Descontando a alcatifa que antes havia galgado e serpenteado os corredores escuros, que foi arrancada para dar lugar a mármore (naturalmente falso), o demais preparo ficou como sempre esteve:

Dois andares de pequenas lojas prestando pequenos serviços, isto é, acessórios de telemóveis, venda de electrodomésticos, videoclubes, bijuterias e bugigangas várias, confecções e roupas berrantes, iluminação para o lar, tabacarias, lavandarias, um cabeleireiro uni-sexo que faz implantes de tranças artificiais ou naturais e até importadas do estrangeiro, restauro de hardware e outras informáticas, a capela de uma igreja baptista, fotógrafos para casamentos e baptizados, decorações para o lar, acolchoados, retrosarias, afins, e por aí adiante.

Cá em baixo, junto à saída das traseiras, um snack-bar discreto neste shopping sumido, a que um pato-bravo, num raro momento de inspiração premonitória, baptizou de “Shopping Babilónia”.

De facto, frequenta esta portuguesa torre de Babel, feita de dois-pisos-dois de galerias comerciais, uma amálgama de gentios de todas as raças, credos, origens, etnias, disposições e feitios que na Amadora se podem encontrar: trabalhadores honestos e, modo geral, bastante feios. "Esta gente", parafraseando um conhecido colunista de um jornal diário, vinga-se do dia a dia o melhor que pode refastelando-se em cadeiras de metal consumidas, atarrachadas por parafusos carcomidos, a mesas de alumínio oxidadas.

No círculo que estas mesas formam formam-se, por seu turno, comunidades (de imigrantes) que se espalham (mornamente cavaqueando) naquela imitação de esplanada

(com tanta descontração como se eles estivessem na sua terra, pensa de si para si Sílvio, contendo silenciosamente, também ele o melhor que pode, o seu desprezo).

É, pois, neste bar decrépito que elas (as freguesas) acomodam os seus rabos rotundos para observar a quantidade exacta de sacos de compras que carregam as demais

(importa sobremaneira, é bom de notar, instalar-se nas cadeiras frias com o máximo de sacos de compras possível, sinal de sucesso no sonho lusitano),

há que fingir conversar com as vizinhas (disfarçando com tragos rápidos de bicas mornas) para poder dialogar, acima de tudo e porque é isso que verdadeiramente conta, com os sacos de compras das outras.

É também na esplanada a céu fechado, que eles (os fregueses) fumam os seus cigarros nacionais (numa uniformidade de gosto que previne o cravanço) e tragam em goles gulosos cervejas de medida comedida (as grandes perdem rapidamente frescura).

Eles estão sentados no ângulo oposto ao balcão, trincando rissóis (quando sentem muita larica) e cuspindo cascas de tremoço (quando apenas a querem distrair).

Contam, nas gargalhadas que enfeitam a conversa reservada a machos, anedotas sobre mulheres. Se uma senhora se aproxima , quase sempre se calam. Ocasionalmente, dirigem-lhes a palavra (o que sucede apenas quando as qualidades sedutoras são unanimemente observáveis pela sabedoria barata daquela horda de alarves).

Estes piropos são lançados do canto onde eles, os fregueses, teimosamente persistem em se plantar:

Tal faz-se junto da penumbra que cerca a casa de banho das senhoras, à boca do trajecto que as senhoras têm de percorrer em passo rápido,

Para escapar aos olhares sôfregos dos senhores.

É, pois, neste bar, chutado para canto de um shopping remoto, que Sílvio, que nunca teve uma mãe (pelo menos que fosse digna da enormidade opressiva da palavra: “mãe”), serve com indiferença freguesas e fregueses.

Sílvio gostaria de passar à acção.

Espancar, talvez até à morte, as pessoas indiferentes. Para Sílvio, há sujeitos que não contam enquanto tal.

Infelizmente para o quadro de valores que foi interiorizando na ausência de superior aconselhamento (materno ou outro), Sílvio sente enorme frustração por ninguém tomar as rédeas.

Sílvio gostaria, é evidente, de fazer justiça pelas próprias mãos mas, não sem hedionda vergonha, resigna-se a esperar que uma mirífica milícia de jovens suburbanos trate do assunto

(Sílvio acredita ainda menos no Governo ou nos políticos, que deram provas dadas que jamais deram, dão ou darão conta do recado).

Espera que uns jovens heróis sujem as mãos por ele, para que as suas possam permanecer limpas.

E assim vai, com a ira que só a cobardia consegue suster, servindo bicas mornas e cervejas de medida comedida àquela gente suja.

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16 de outubro de 2008

O elogio do inútil

Escreveram-me:

"O inútil é o subtrair-se à ditadura das finalidades que acabam por nos desviar do viver autêntico.

Revemo-nos no versos que Alexandre O'Neill escreveu em "Adeus Português"".

«... nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver»

Eis a prova de que a minha mãe é muito melhor do que a mãe da minha vizinha.

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13 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Estou equipado com um olhar diferente, hoje em dia. Infelizmente, não se limita, como antes, a raiar a superfície das coisas. Prescruta mais fundo e cai no abismo do horizonte. Esta eficiência é muitas vezes desconfortável, troca-me os passos, cerra-me os olhos, perante a luz tanto quanto perante a escuridão.

Ponho-me no lugar da Velha e tento pensar na quantidade de memórias que terão restado de tudo o que o seu olhar registou. Penso na sua força e tremo. Tenho tantas fotografias guardadas atrás dos meus olhos e mantenho-as numa desarrumação caótica, estão desligadas, lutam entre si tentando ocupar o espaço da outra, numa luta inglória para tomar o lugar que lhes pertence.

Trabalho arduamente nesta tarefa metódica, de dar sentido àquilo que vejo. Por isso registo tudo, faço por notar a mais pequena variação de luz que cada momento cria, tento conter cada pedaço de tempo bem atado dentro de si mesmo – como agora, enquanto a observo da cama, está sentada à luz ténue do candeeiro de secretária que revela apenas uma das faces do rosto contra a escuridão e ilumina o pó que decora a lombada do livro sobre o qual se debruça, o olhar fixo no seu mundo de fantasia.

Está imóvel, a tal ponto imóvel que a sua respiração tranquila chega para transformar o que seria uma fotografia numa cena em tímido movimento, digna de um filme de Bergman. Enquanto a observo enfeitiçado, os lábios carnudos firmemente cerrados, a fronte enrugada pela concentração, todas as outras imagens se desvanecem no escuro da noite.

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As segundas, de manhã

Sabes como é acordar de um sonho,
Certo de que voas
E que um amigo, que aliás
Jamais conheceste,
Voltou.

E animas-te com a ânsia, breve,
De te fazeres à estrada e de com ele
Sentires nada.

Ou ao menos domar o volante e arrastares contigo
Aqueles que amas
E sentires tudo.

Sabes como é,
Enquanto te escanhoas e contemplas
As tuas sobras no espelho,
Fazes as contas

Ao percentil dos dias,
Dos que transportas no dorso, que
Gastaste em assinar o teu nome,

E o dia começa enquanto conduzes
Dando prioridade
Aos que te conduzem,

Passada aquela fresta de hora, o momento
Solitário,
O dia ressuscita e ultrapassa-te, ele é
Aquele carro,
E mais outro
E mais outro carro.

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29 de setembro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Amansado pelo caldo verde que a Velha, como todas noites, servira como ceia, chegava a hora mágica em que fazia as pazes com o dia.

A Velha sentava-se no cadeirão de palha e pregava à lareira, beijando de quando em vez o crucifixo, que segurava com força entre as mãos rugosas, salpintadas de manchas castanhas, como continentes num planisfério.

Orar terços, rezar novenas, rogar aos santos que acudissem numa cantilena monótona era tarefa que a Velha desempenhava amiúde, ora com aparente indiferença, ora num fervor que parecia conduzi-la ao centro do universo. Habituei-me de tal modo àquela ladainha contínua, que, se deixava de a ouvir, receava que a Velha se desfizesse em pedaços, temendo que a rotina sonora fosse a argamassa que juntava as peças frágeis do seu corpo mirrado. A oração parecia protegê-la e eu sentia-me protegido.

Tirando as orações, pouco mais dizia. Mas, acabado o terço da noite, colocava a minha nuca no seu colo e os nossos rostos brilhavam com os sonhos que lhe revelava. Era só depois da ceia e da oração que lhe seguia que a Velha ouvia o que eu tinha para contar. Nunca os punha em dúvida, por mais absurdos que pudessem parecer, embora, quando uma noite lhe perguntei se os sonhos se tornavam realidade, ela respondeu-me

“Se não os partires”

“E como os posso partir?”

“Se te agarrares a eles com muita força.”

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23 de setembro de 2008

Ouvindo a conversa na mesa do lado

- Epá, este fim de semana fui almoçar a casa do Pedro.
- A casa de praia?
- Sim, pá. E conheci a mulher do gajo.
- E então?
- Epá, é feia, feia, feia que nem imaginas.
- Pior do que as nossas?
- Nem imaginas, pá.

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19 de setembro de 2008

Expliquem-me como se fosse muito burro

- Então diga lá, ó Alberto Martins, o senhor é a favor do casamento entre homossexuais?

- Ao contrário da conservadora líder do principal partido da oposição, que acha que se deve chamar outra coisa qualquer ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, nós no PS somos muito progressistas. A resposta é sim.

- Então o PS vai votar a favor da proposta do BE e dos Verdes para admitir o casamento entre homossexuais.

- Não.

- E vai dar liberdade de voto aos seus deputados?

- Somos um partido plural, mas neste caso não vamos dar liberdade de voto.

- Vamos lá ver se entendi? É a favor do casamento entre homossexuais?

- Sim.

- E o PS vai votar a favor?

- Não.

- E não vai dar liberdade de voto?

- Não.

- Porquê?

- Porque a medida não estava no programa eleitoral, portanto o PS não tem legitimidade para a tomar.

- E a nova lei do divórcio, estava no programa eleitoral?

- Não.

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17 de setembro de 2008

O consultor rotundo

É tão gordo, tão gordo, tão gordo, que nunca desaperta a gravata, mesmo quando o calor aperta o pescoço e a gola da camisa se inunda de transpiração: não sobraria ponta de gravata para manter o nó.

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Coisas do bloco de notas

(cont.)

Terei saído porta fora e os carros terão passado ao largo sem que lhes saísse fumo dos bofes, as crianças recém arrancadas ao leito terão feito idênticas birras de sono expressando guinchos sem que um berro lhes saísse das goelas estridentes, uma cadeia em série de mães terá ameaçado a palmada no rabo com a mão aberta, irrompendo-se-lhe esgares mudos de impaciência, o cão vadio que mora debaixo do cornijo na esquina terá mijado no pneu da carrinha abandonada sem que nascesse o riacho delimitador de território canino. Da boca desdentada do vendedor de cautelas, hoje cerrada, sai um pregão, incrivelmente mais sonoro, mais límpido, que atrai as atenções dos transeuntes, que augura TANTOS-MIL-EUROS-SEXTA-FEIRA-ANDA-A-RODA. Hoje o pregão saiu com voz de Manuel Alegre, como se a sorte da nação se confundisse com a sorte da taluda. O painel electrónico estacionado em cima do viaduto, virado para a centopeia com rodas no lugar de patas que entope este carreiro, também esse ofusca tudo, cintilando ESTREIAS e FINAIS DE TELENOVELAS e respectivos PATROCINADORES e EXPOSIÇÕES e concernantes FILANTROPOS.

O chumbo atmosférico mói, dissolve as coisas de que o quotidiano citadino era feito.

Menos a publicidade.

Quero lá saber.

E começou, o dilúvio, como parecia estar escrito, nessa manhã em que um Inverno tomou de assalto o Verão de calendário, sem pedir licença.

E eu sem guarda-chuva.

Nesse preciso momento, escorrego.

Escorrego e deslizo, sobre um mar de folhetos publicitários que jazem na rua, caídos do céu metálico. O asfalto está grávido de celulose.

A camada de papelada empilha-se progressivamente e os limpa-neves (não os sabia nos arrabaldes de Lisboa, mas que sei eu) chegam de imediato e não lhe dão meças, as máquinas também escorregam e deslizam.

Aos folhetos fininhos de publicidade, pequenas lâminas de barbear que esfacelavam os guarda-chuvas dos vizinhos previdentes, sucedem maços de jornais atados por cordas como se empacotados para os diversos quiosques de esquina. Peguei num deles, que me tinha caído com estertor de dilúvio a poucos centímetros do meu corpo, só por acaso não me levou desta para melhor, ou para pior, o que sei eu, e não se tratavam, afinal, de jornais, seriam grossos catálogos de publicidade, viagens em promoção a seguros e catalogados paraísos que cantam, e esses amanhãs anunciados chovem magoando os transeuntes incautos.

Os dias passam e a tempestade amaina, mas não pára. Uma contínua e modorra chuva de modestos mas insistentes folhetos publicitários mantém-se, molhando parvos, acabando por cobrir toda a via pública, uns centímetros primeiro, uns metros passados uns dias. Ao quinto dia de chuvisco publicitário ininterrupto, a papelada chega ao terceiro andar do prédio dos arrabaldes, o estado de calamidade pública foi decretado e o trânsito cessa, deixa de haver condições para a circulação automóvel, os sub-urbanos voltam aos abrigos, e, com eles, a centopeia com rodas no lugar de patas regressou ao casulo deixando o carreiro livre à PROPAGANDA. Ao menos o ruído dos escapes, rotos, remediados ou duplos, cessou, substituído porém por estridentes ANÚNCIOS sonoros a todo o género de PROMOÇÕES, vindos nitidamente da nuvem que não havia meios de embranquecer, nem com o DETERGENTE LAVA-MAIS-BRANCO que os obuses do exército lançavam inclementemente na sua direcção, sem resultados visíveis.

Vá que não vá que vivo num andar alto.

Pela primeira vez na história a televisão passava, a-verde-e-branco, o boletim meteorológico da publicidade.

E ao sétimo dia, a tempestade desabou. Granizaram todos os livros que já ninguém lia, arrastando tudo à sua passagem, rios de papel velho pareciam vingar-se do esquecimento, cascatas de filosofia existencial justificavam a sua existência. Chegaram ao meu andar dilúvios de caderninhos, daqueles de apontar notas, revestidos de cabedal preto, MOLESKINES, milhares de MOLESKINES empilhavam-se até ao meu piso, a janela quebrou-se sob o seu peso, abri um, antes que me afogasse na torrente de caderninhos de cabedal e reconheci, no átomo de segundo que restava da minha existência, naqueles gatafunhos a minha impressão digital, aquela era a minha letra.

Morri, pois, sufocado de milhares de MOLESKINES cheios de inutilidades apontadas por mim.

Morri.

Reencarnei arfante, ridiculamente perturbado, perante a luz laranja que afagava as pálpebras fechadas, anunciando o calor de uma manhã de Verão, como tantas outras.

Os discípulos daquele velho austríaco que expliquem o pesadelo, se quiserem fazer de mim um caso clínico. Por mim, estou-me nas tintas para simbolismos oníricos. Faz-me feliz, esta luz morna de Lisboa que me invade o quarto.

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13 de setembro de 2008

Coisas do bloco notas (aquele sempre deixado ao lado da cama)

Viro-me para o termómetro pendurado na parede por detrás de mim e o mercúrio parece ter perdido todas as suas coordenadas registando temperatura alguma.

Sinto-me ausente, vendo bem, nada de novo, nem me chego a aperceber de que não se trata de nada de novo, isso exigiria análise, e eu cheguei, no que toca à exploração da inércia, a uma região para lá dos limites conhecidos, não me reconheço nem deixo de me conhecer, sou melhor definição de céptico do que a encontro no dicionário – uma hipérbole de niilismo, eu sou aquele que nem acredita que exista.

Tomo uma dose reforçada de cepticismo, faço de conta de que não é nada comigo e retiro do armário, não, não é esse do pinho barato, o outro, o da kitschenete por cima do lavatório onde jazem os pratos conspurcados de restos de comida de pacote, e retiro a cafeteira engavetada com que costumo preparar o café aromático e fervente (nesta casa a única iguaria é o café de Timor com que enfrento manhãs chatas).

E esta não é chata, é esquisita, mas que se lixe, ponho-o ao lume e imediatamente me apercebo, mas que grandessíssima merda, que as munições acabaram antes mesmo do combate, a chama do pavio a álcool está, nesta manhã de chumbo, esquisitamente inerte, incolor. Cinzenta.

Raios a partam, não me dando por vencido reforço a mezinha, juntando ao preparado, apenas morno, umas pingas do meu scotch, que hoje, que grande porra, não podia senão cheirar a vodka, ou seja a nada, e saber mesmo a vodka, ou seja, a vácuo. Faz por arranhar a garganta e tanto, por quão pouco, é, por enquanto, quanto baste. Pouso a caneca no balcão, sento-me no banco alto comprado nos grandes armazéns suecos, alcanço o controlo remoto e aponto-o para a televisão. Não acende.

Porque me trocaram o ele-cê-dê por esta velha caixa de plástico preto encardido, logo a Grundig da era pré-sonyca que me proporcionava desenhos animados saídos do imaginário da cortina de ferro, aqueles que eram apresentados por aquele sujeito fininho de ar ingénuo, o careca, como é que o gajo se chamava,

Vasco qualquer-coisa,

Vasco Quinta,

não,

(porra, como se chamava o gajo?)

Vasco Granja,

É isso!,

O saudoso Vasco Granja, o que será feito do Vasco Granja da minha infância e o que será feito dos artistas plásticos da cortina de ferro e o que será feito do Marcelo de cabelos ruivos que jogava comigo à bola no campo do bairro e que era sempre chutado para a terceira equipa (como eu), e que protestava e guinchava e chorava de frustração (coitado, precisamente ao contrário de mim, que sempre soube o meu lugar, defesa central da terceira equipa, mas dava o litro pelo colectivo, era o que o treinador de fartos bigodes pregava como um suplente do padre do bairro, e o que será feito do bigodudo treinador do fato de treino do galo desportivo gaulês).

Irra, chega de comiseração infligida, de memórias tão inúteis como aquele sofá de veludo gasto com molas quebradas como algumas vidas, onde já nem eu me sento, deixa-me lá ligar o aparelho.

Acendo a televisão, carregando à manápula no botão de plástico, treque, mudo de canal, treque, nem sinal de recepção da emissão télévisiva, até que o aparelho, retorcendo-se nos seus circuitos internos, emite um zumbido de aquecimentos e o ecrã preto se vai progressivamente transformando em fantasmas esverdeados e os fantasmas dão lugar a figuras nítidas verde-e- brancas, se bem me lembro os adultos diziam que a televisão é a preto-e-branco e eu achava que era a verde-e-branco, sempre tinha mais cor, os graúdos saíram-me uns trágicos. E eles diziam-me que o gato via assim, a preto-e-branco, e eu pensava que o gato, quando acordava, também precisava de aquecer os seus circuitos internos antes de reflectir sobre a sua mansa vida felina(muito reflectia o gato, sempre pensei que ele era o mais introspecto filósofo do mundo),

E por isso é que ele se punha na varanda ao sol horas seguidas, só lhe faltava chamar “Jacaré”, mas o meu irmão mais novo quis antes dar-lhe um nome felpudo, mais digno de um bichano (“Gatucho”), e,

Quando o ecrã escuro se transforma, com vagar e aquecimentos de circuitos internos, em preto-e -branco, as câmaras como sempre, fixam o trânsito que, como todas as manhãs, se desloca como um animal único, uma centopeia de sub-urbanos, com mil rodas fazendo as vezes de mil patas, entupindo carreiros de asfalto, os pontos de reportagem são os de sempre, a SEGUNDA CIRCULAR, a PIMENTEIRA, o NÓ DE FRANCOS, o MERCADO ABASTECEDOR, a PONTE DE ARRÁBIDA, o ESTÁDIO NACIONAL, esses lugares de ninguém a quem as rádios e estações televisivas inventaram um nome.

No aparelho antigo, já aquecido a preceito (até que enfim que alguma coisa aquece nesta história) os sítios a que as rádios e estações televisivas deram um nome aparecem incongruentemente nomeados em caracteres de leste, como os desenhos animados do apresentador fininho, o Vasco não-sei-quê, cirílicos, é assim que se chamavam os caracteres, e não estranho os espantosos caracteres eslavos na televisão portuguesa, e bem assim faço por não estranhar como foi o televisor aquecer internamente com este frio de deitar abaixo o mais resistente dos lobos.

Irrito-me com a interminável centopeia sub-urbana e desligo a televisão, puxando-lhe o fio da meada, perdão, da tomada, agora calas-te, emissão télévisiva, que eu assim ordeno, num gesto fátuo de indivíduo que me dá a ilusão de povo soberano .

Acendo o transístor que me norteará o duche, impedindo que o torpor da água escaldante me adormeça com as notícias requentadas da véspera, mas hoje não sai água quente, os canos gritam mal rodo a torneira, queixam-se, a água congelou com este frio maldito e rasgará as veias da máquina hidráulica se persistir com as minhas intenções salúbricas, que se lixe a higiene, e então resigno-me a fechar a torneira e, de qualquer modo, a rádio não debita notícia alguma, fresca ou reciclada, limita-se a debitar reclames, IT´S A SONE, O REI DOS MEIPULES, O FRANGO É NA GUIA, EU SOU DONO DE UM BANCO, E VOCÊ?, O SÍTIO DOS BONS AMIGOS, HÁ JEQUEPOTE, CRIANDO EXCÊNTRICOS TODAS AS SEMANAS, COM UMA GESTÃO UNIFICADA DOS SEUS MEIOS DE COMUNICAÇÃO O SEU NEGÓCIO AVANÇA, AQUELA MÁQUINA, MEÁRI, COM CAPOTA, SEM CAPOTA, ELE É JIPE É CAMIÃO, O BRILHO CONTÍNUO, VENHA VIVER AS NOITES LONGAS DO CASINO, TIRE FÉRIAS CÁ DENTRO, ESCRITA FINA, ESCRITA LARGA, BIC, BIC, BIC, aproveito a curta pausa musical no programa de publicidade antes que este me dê cabo do tímpano, A PUBLICIDADE SEGUIRÁ DENTRO DE BREVES MOMENTOS, FIQUE COM A SUA RÁDIO, arranco o transístor da tomada, deixo o fio à meada.

Largo decidido o apartamento, entro no elevador, parece-me que entro, até dou por isso porque no elevador o meu nome está afixado como devedor reiterado no papel A4 dirigido aos demais condóminos que ANUNCIA - apre!, nuvens colossais e anúncios ensurdecedores! - anuncia o edital de trazer por casa que NA AUSÊNCIA DE QUÓRUM, A SESSÃO PROSSEGUIRÁ EM SEGUNDA CONVOCATÓRIA NA NOITE DE HOJE PARA DISCUTIR OS TEMAS CONSTANTES DA CONVOCATÓRIA QUE FOI ENDEREÇADA NO DIA TANTOS DE TAL, abro a custo a caixa de correio, sei-o porque o gatilho da fechadura estava entupido com dezenas de anúncios iguais em papelinhos cortados a xizato de empregadas com experiência, PASSAM A FERRO OU ENGOMAM, COZEM E COSEM, E TIRAM O PÓ E FICA TUDO A BRILHAR, DÃO REFERÊNCIAS (bem precisava de referências), e o movimento de torção necessário para que a fechadura entupida com tanto papelinho acabe por ceder fez-me torcer o pulso e noto uma ínfima e breve dor num pequeno músculo do pulso de que não sei o nome, porque provavelmente as rádios e estações televisivas ainda não se deram ao trabalho de nomear, mas com essa ínfima dor volto, por sensoriais motivos que duram infimamente, a dar conta de mim mesmo e a tentar deixar-me de merdas e a fazer-me à vida e no meio deste pesadelo de torpor, pôr-me nos eixos, ordenando-me: “faz-te à vida”.

(Cont.)

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11 de setembro de 2008

Prenda de um alquimista

Para o amor, essa quimera que engana a inteligência raptando-nos para a adolescência, batam-se quilos de inocência com uma pitada de demência, leve-se ao forno da paciência em lume forte de tolerância, depure-se das excrescências da ganância e da desconfiança, mexa-se o produto com a varinha mágica do sorriso, e sirva-se com total imprudência.

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10 de setembro de 2008

Coisas do bloco de notas

Desperto a custo, deitado na velha cama de um só corpo, sem percepção inteira da realidade.

Não fora o arrepio que me percorre a nuca, hesitaria em categorizar o meu estado como: “em vigília”.

Levanto-me e não há chinelos que me acudam, estarão a hibernar no velho armário de pinho rasca, escondendo-se do verão no escuro, em diálogo surdo com os radiadores a óleo, os cobertores de lã puída, os anoraques herdados do adolescente que já fui.

Aproximo-me da janela, deixada aberta de véspera para alívio do bafo estival. O ar concreto que invade o quarto violenta-me. Dou-me conta de que tenho ossos. Doem-me com este frio espantoso, especialmente o maldito tornozelo direito nunca refeito da rotura de ligamentos cruzados, mas nem é por isso que os meus passos são tão medidos, cautelosos como se passeasse num bazar do Martim Moniz atafulhado por brique a braques inúteis e senhoras pechincheiras que se atropelam mutuamente, os objectos e as sujeitas, quero dizer. Antes de ser corpo, sou instinto e o que me afrouxa a marcha não é o maldito tornozelo. É o medo.

Um medo irracional, e não o são todos? Não bastava este gelo dos diabos a meio de Agosto, acompanha-o um breu que me põe em cautelas de gato à rasca. Quando finalmente me chego ao beiral da janela, o que observo não faz sentido: um manto de chumbo paira parecendo medir as coisas todas, colossal. Como ele, fico na expectativa.

Até que aquela prodigiosa massa cinzenta de que é hoje feito o céu decide-se e apropria-se da realidade, soberba, desce à terra, imparável, como se fosse uma metáfora da vontade dos deuses, abafa todas as cores por entre a malha negra de que, incrivelmente, é tecida.

O coro colectivo da passarada das traseiras, que ainda ontem cantava, chilreava e gralhava, dando um ténue sinal de vida a este bairro dos arrabaldes, emudeceu. Devem ter emigrado, asas para que vos quero, sem tempo para fazer malas, lá para as áfricas amenas.

Troa um silêncio de morte.

Fecho o silêncio com a janela e recolho-me no conforto do apartamento, mas também aqui paira uma tranquilidade excessiva, ameaçadora, que a vibração do ultrapassado frigorífico não chega a amenizar (há quantos anos não dava ouvidos ao frigorífico, o tipo parecia o pedinte da esquina da Casal Ribeiro, alertando transeuntes que o não ouvem para o fim do mundo que aí vem, mais cedo do que pensam, os transeuntes).

Desperto, assim, em pleno Verão, num insólito Inverno que desceu sobre a cidade, um Inverno tão fora de lugar que apenas contido nas fronteiras da ficção o catalogo como: "verosímil".

(cont.)

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5 de setembro de 2008

Retalhos da vida de um consultor

Estou tão estafado disto, que qualquer dia passo de Novo-Rico para Novo-Pobre. Bonita ambição: encho o peito de ar, alardeio o meu nível cultural acima da média, desdenho a corja que me rodeia, borrifo-me para a Corporação e vou à minha vidinha: orgulhoso e sem dinheiro para mandar cantar um cego. Ele havia uma starlette qualquer de Hollywood (cujo nome não me recordo, mas, lá está, é uma temática que não me merece muito importância) que rezava assim: "Se queres saber o que Deus pensa de quem tem dinheiro, basta observar a quem o entregou."

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27 de agosto de 2008

In formação

Sabia que?

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31 de julho de 2008

Retalhos da vida de um consultor

Ao almoço, os colegas demonstram o seu fino gosto literário: apreciam deveras Miguel Sousa Tavares, John Grisham, Margarida Rebelo Pinto e José Rodrigues dos Santos. Faltou o Dan Brown para completar o ramalhete, decerto porque a esotérica cá do escritório está de férias, relendo aquela coisa que elege o walt disney como o da vinci dos tempos modernos. Depois de um arrotinho de bebé proferido ao de leve, que a ninguém perturba, coitadinho, pois se ele sempre pede com licença, o sujeito tão simpático, tão enorme, tão suadinho, tão rosado, tão esburacadinho, questiona os demais sobre as deslocações cinematográficas dos outros tantos, ao que o então-que-tal, tudo-bem?, tudo-bem, que acaba de entrar com um simpático então-que-tal, tudo-bem?, tudo bem, retorque na que desde que se lhe nasceu o rebento, nunca mais foi ao cinema, a não ser, é claro, para assistir babado na companhia do seu sucessor aos grandes êxitos da dreamworks e estúdios disney, ao que a rapariga que faz tão bem as contas, tudo bem apontadinho, as tardes de sexta-feira a contabilizar os recibos de despesas que isto de trabalhar para aquecer é que não, informa que não vai de férias para a praia que o sol lhe dá comichões, fica cheia de borbulhas a pobre, em especial aqui no peito e no tronco, aqui no tronco, diz, explicando gestualmente, muito embora as mãos apontem o antebraço, outro comenta o jantar de empresa no faz-figura, que como o nome indica deu a impressão de só fazer figura, diz, aquilo era tudo "nova cuisine", era só apresentação, mas pouca substância, vá lá que o chefe é que pagou o balúrdio, para o ano há-de ser no fuso na arruda dos vinhos que aquilo é que é comer, posta de bacalhau do alto e costeleta de novilho, nem cabe no prato, e o chefe que manda cobrar ao cliente, e o cliente que não paga, e as reuniões de balanço, e os objectivos para o ano, o time bilding e coiso e tal, e se já vimos o porche novo do chefe, e eu comprei agora um plasma, que é para ver o indiana jones que baixei ontem da nete, e o então-que-tal saca da pastilha e masca-a com prazer, degustando cada reviravolta da shuingue game, que eu bem sei porque bem oiço, cada chupadela é de alto gabarito, e até parece que, sim, até parece que o então-que-tal, tudo-bem?, tudo-bem está regressando à infância, o pobrezinho, tal é o prazer com que ele revolve a borracha lá nas suas profundidades odontológicas, tanto que agora, ó supremo gozo, oiço com alarido o balãozinho a rebentar, trás!, ele há tanto tempo que eu não ouvia a pastilha a elasticar, a elasticar, até rebentar, e agora aspira os rebordos da dita de volta para onde a rebelde nunca devia ter saído, de volta para a sua boquinha, oiço tudo isto, e de volta à toca lá recomeça o ciclo, que nada se perde e o barulho pueril do então que tal perturba-me, confesso, não suporto, não aguento e para esta maçada toda só me parece haver uma saída:


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23 de julho de 2008

Conto do tempo que passa (o dramático epílogo)

O patrão não compreendeu:

— Mas ó Silva, sente-se bem, ó Silva? Agora que está sem salário? Não está satisfeito? Falta pouco para que tenha de pagar para pertencer ao quadro. Desprezar décadas de esforço dedicado? Não está satisfeito? Ó Silva, pense lá? Reconsidere! O que me diz?

A emoção e o cansaço acumulados impediram qualquer resposta.O Silva afastou-se, sem ruído, como folhas voando ao vento. O peito sucumbiu ao peso dos anos. A tez perdeu qualquer cor. Os membros recolheram. A estatura aplanou de vez. O corpo despiu-se da humanidade, tornou-se físico, concreto, diminuto, quadrado.

Silva, ou o que restava dele, não quis pensar em mais nada. Num último estertor do homem que tinha sido, fez por não sonhar com uma sonolenta viagem da Rodoviária e com o Pinta-Pombos, o Espanta-Lobos, o Fuça-de-Porco e, mesmo até, o Navalha-Afiada. Que estariam à sua espera, bebendo a mine, como quem não quer a coisa, à beira do apeadeiro de aldeia celeste, a caminho de sabe-se-lá-onde, onde o raspanete mimoso de uma Mimosa os esperasse esperançosa. E uns pais o mimariam ainda mais, pais que, com o tempo, pareciam avós, aliás, bisavós, aliás trisavós, aliás, a origem de todas as coisas.

O Dr. Silva, aliás, o Silva, aliás, o Zé Manel, aliás, o-não-sei-o-quê, desistiu.

A transformação, com o tempo, completou-se. O chefe pegou no livro mercantil, folheou-o distraidamente e colocou-o (ao Silva, aliás, ao livro) na prateleira. E para ali ficou, para sempre.


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22 de julho de 2008

Conto do tempo que passa (II)


A estratégia resultou e logo o Silva foi engajado. Entrou alentejano, saiu escriturário. Num ápice.
Um ápice lisboeta. Foi um instante que nem deu para saborear, e então foi ao café da esquina, a “Flor de Santarém”, beber uma lambreta ao balcão de fórmica e tagarelar sobre nada com o escalabitano emigrado na urbe, que um tipo que entende tanto de touros também há-de entender um alentejano. Ergueram brindes à vida, à saúde e ao futuro.

No dia seguinte, o Dr. Silva, aliás “o Silva”, para o patrão, entrou ao serviço.

Com uma perseverança cautelosa e rude, foi dando de si para além do que podia e foi bebendo do que os colegas do lado lhe iam ensinando, mais do que se apercebiam. E não, obrigado, ia todos os dias inventando desculpas que não podia almoçar, que a sua firma (pois que a firma amiga do patrão amiga sua era) tinha de encerrar o ano e mais tarde havia tempo para a almoçarada, que havia um balancete para fechar, que o livrete estava caducado, que o imobilizado não tinha sido abatido com a dignidade que um inválido merece.

O tempo passava, e o tempo parecia correr de feição.

Ao fim de um ano, o patrão chamou-o ao santuário. Ao gabinete do patrão, nem mais nem anteontem. E que era para já, se não fosse incómodo para o Dr. Silva, aliás, “Ó Silva”, “ó Silva, desculpe lá se interrompo, mas tem de vir já o meu gabinete, que é tempo de avaliações.” De súbito, de sopetão. Acelerando de improviso, o tempo, esse manhoso, não o estaria enganando, apanhando-o ao pé da curva?

Sentou-se modestamente bovino a convite do patrão, o Dr. Silva, aliás o Silva, o Zé Manel, o aliás que o amigo leitor prefira, fica ao seu bom critério.

Que tinha sido um ano proficiente, o do Silva, que tinha sido um ano muito jeitoso, o do Silva, que se tinha esforçado como uma mula, o Silva, e que o patrão, que tinha muitos anos daquela lida, sabia reconhecer quem o merecia.

Que tal, ó Silva, uma diminuição no salário, insignificante, que o Silva sabe bem como estes são os tempos da amargura, que estes são uns tempos lixados? Digamos, uma diminuição de uns razoáveis dez por cento, olhe que, ó Silva, olhe que os outros, não têm direito a isto, eu cá, por consideração a um funcionário tão promissor, consigo oferecer uma diminuição de dez por cento, a culpa não é sua, Ó Silva, se não consigo oferecer mais. É o que se pode nestes tempos, que Diabo? Satisfeito, Ó Silva?

Cortou cerce a palavra (e a palavra cortou cerce o embaraço do patrão) o Zé Manel, aliás o Dr. Silva, dizendo que bem sabia a qual a conjuntura deste tempo. E que uma diminuição dessas era para ele um alento, um reconhecimento de uma aposta no futuro que o patrão estava disposto a enfrentar contra todas as marés. Tempo melhor viria, estava ele certo, o Zé Manel, ou melhor, o Silva, sabendo que não podia estar mais de acordo, o patrão.

Mais um ano passou, com esforço, dedicação, devoção e perseverando para a glória, o Dr. Silva.

Os cabelos pretos tinham ganho uns irmãos grisalhos.

Chegou o timing da avaliação para o Silva, e o patrão chamou o Silva ao seu santuário.
O Dr. Silva era um rapazote sonhador, ainda. Aquele era o seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados com uma benesse daquelas. Era merecido, não dera uma baixa, não chegara um minuto atrasado.

Ao quesito “Satisfeito, Silva?”, respondeu sorrindo, em jeito de reconhecimento da tímida oferta do chefe: mais uma mísera diminuição de dez por cento no salário.

Orgulhoso do seu esforço, Zé Manel, de seu cognome “o Silva” olhou quase com vaidade para aqueles dois anos e foi sem esforço que se livrou da casinha modesta no centro da cidade, perto do escritório, e alugou uma casita ainda mais modesta nos arrabaldes. Assim não contribuiria para a especulação imobiliária, e deixaria livre o espaço para quem nele tinha nascido, contribuindo para a fixação da população. Elevados motivos patrióticos que Zé Manel sabia que, bem explicadinhos, encheriam de orgulho a família lá na terra.

O tempo, pois, claro que ia passando, um amigo que o velava, pensava o Zé Manel entre os seus botões, na sua casa tão longínqua de tudo que nem escalabitanos que percebessem de touros havia com quem conversar. Um amigo silencioso, mas amigos, palavras para quê?

Todos os anos, vinha outro incentivo. Era a paga de tanto zelo, tantas horas mergulhado em balancetes e livros de contabilidade, diários, razões, copiadores.

E os cabelos pretos a ganharem cada vez mais compadres grisalhos. A cara chupada mirrava a olhos vistos. Fora um rapaz teso, o Zé Manel, mas, sob o peso da responsabilidade e dos cuidados na escrituração, a cada ano que passava mais débil ficava.

Ao ano n, o chefe chamou-o ao íntimo reduto do seu gabinete profissional e comunicou o enésimo corte salarial. Desta vez, a empresa atravessava um período de forma excepcional. Tinham conseguido resistir aos desafios da globalização, apostando na eficiência ao invés dos altos salários, e assim se conseguiram defender, na era da globalização, dos felinos emergentes do novo Novo Mundo. Pelo menos foi o que o Zé Manel entendeu do complexo intróito do discurso do patrão.
Em suma, a redução salarial foi um pouco maior: quinze por cento. Satisfeito, ó Silva?
Mais sorrisos, mais solilóquios.
E mais uma mudança de casa, cada vez mais acanhada e mais apartada do escritório. Agora “o Silva” acordava de madrugada. Comia cada vez menos, o que contribuía para a sua linha e, consequentemente, para uma menor obesidade do povo português. Um Índice de Massa Corporal à prova de qualquer estatística de Bruxelas. A sua tez foi passando de um rosado curado pelo sol da vindima da aldeia de Serpa para um cinzento, digno das brumas de Sintra. Mas o seu Quociente de Felicidade Interior Aparente ia aumentando exponencialmente.

Mais anos passaram, sempre amigos.

Mais irmãos grisalhos. O seu raciocínio limitava-se à lógica matemática. Sonhava com livros de inventários, cadernos de balanços, resmas de actas, folhas soltas de escrituração. Acredite ou não o amigo leitor, dava até impressão que o próprio corpo se transformava. A tez perdia cor, era um homem a preto e branco. Emagrecia cada vez mais, estava fininho como as folhas dos seus livros. As suas formas, creia o leitor, perdiam as curvas, ganhavam arestas cortantes. Geométricas.

Num desses anos, um que correu em contra-ciclo, explicando-lhe o patrão que é assim mesmo que se gere a coisa, em contra-ciclo, isto é, aumentar o benefício quando a coisa corre mal, e diminui-lo quando a coisa corre bem, o Silva, nesse ano de glória da firma, não lhe viu diminuído o salário, apenas cortado o benefício da segurança social. O Dr. Silva, pensou, de si para os seus botões, que assim diminuiria a carga das gerações futuras, isto é, em lhe calhando alguma Maria que quisesse desposar aquele esforçado e cada vez mais pálido e desfeito Dr. Silva, sempre deixaria uma reformazita aos seus pequenos Zé Marias.

No entanto, nos anos seguintes, nada aconteceu. Não foi diminuído. Não foi aumentado.

O Zé Manel, o Silva, o ex-Dr.-Silva sofria de terríveis insónias, preocupado. Bem se esforçava para não lhes dar importância, mas até os colegas começavam a não lhe perdoar as faltas de comparências nas almoçaradas semi-sindicais. Dedicava-se incessantemente aos livros comerciais, respirava a tinta permanente, impregnava-se de números, inscrevia linhas, bebia arquivos & documentos. E nada acontecia, de ano para ano. Não suportava a indiferença.

Quando percebeu o que acontecera, pediu desculpas ao tempo. Envergonhou-se por ter desconfiado do seu amigo. Esse seu amigo, que se encarregou de ir tornando o seu corpo mais etéreo, o seu nariz mais adunco, a sua vista mais cansada, o seu odor menos corporal, as suas articulações mais estafadas, esse mesmo amigo lhe proporcionou, passado tantos anos, a surpresa. Respirou descompassado, num assobio que os pulmões contraídos faziam silvar, como um fole acobreado atiça um fogo antigo, antes de se apagar de vez.

Eis então que, já cinquentão, ouviu do seu patrão (e os seus “misteres” também, numa aldeia de casas caiadas situada algures no firmamento longínquo):
— Ó Silva, a nossa companhia tem uma dívida de gratidão para consigo.

O Silva, aliás o Dr. Silva, baixou a cabeça quadrada, que pesava cada vez mais aos ombros rectos e ao corpo esguio.
— Reconhecemos todos os seus préstimos, ao longo de toda esta carreira. O Silva é um profissional à antiga, dedicado, meticuloso, pontual, organizado, leal. Como somos uma empresa que premeia o mérito, é hora de lhe oferecer uma prova substancial do nosso reconhecimento.
O coração do Silva rebentava de expectativa.
— Além de uma redução de vinte e um por cento no seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem do conselho de administração (e olhe que foi decisão unânime, ó Silva), diminui-lo de categoria profissional. Satisfeito, ó Silva?
A revelação deslumbrou-o. O corpo, já domado pelos anos, retorcia-se, a custo, é certo, de emoção não oleada. O tempo, afinal, não o tinha traído. O mundo sorria.

— A partir de agora, o Silva vai passar a ajudante do sistema informático da contabilidade. Afinal, o Silva é o melhor activo humano do activo imobilizado corpóreo. Para que possa assumir convenientemente essa responsabilidade, a partir de agora, o Silva gozará menos três dias de férias. Satisfeito, ó Silva?
Mais uma vez, mudou-se. Um dia largou mesmo o vício de jantar. Ao almoço, uma simples sanduíche, de preferência de mortandela, como se dizia lá na terra sem nome. Uma mine, a acompanhar, abrindo uma estreita fresta à nostalgia. Sentia-se mais leve, e de facto estava mais magro. A transformação física, com o passar dos anos, adquiria contornos fantásticos. Não se limitava a envelhecer, como qualquer tipo vulgar. As suas carnes (as poucas que teimosamente se agarravam como lapas aos ossos), pareciam dissolver-se. Ano após ano, Zé Manel ficava mais plano e quadrado. Ganhava um leve e curioso odor. Zé Manel, aliás o Dr. Silva, assustou-se quando temeu reconhecer uma fragrância com toques de tinta azul e celulose. Nos raros momentos em que a sua mente o poupava às suas obsessões contabilísticas, Zé Manel, o Silva, não se reconhecia ao espelho, intrigava-se e preocupava-se. O que só o fazia refugiar inclementemente nos segredos da escrituração mercantil.

Com o aumento dos horários flexíveis e o culto da polivalência, chegava a casa às onze da noite e levantava-se às três da madrugada. Com transportes urbanos e passes sociais incongruentes pelo meio.

A vida foi passando, com novos incentivos e prémios. “Satisfeito, ó Silva?”Aos sessenta e cinco anos, o ordenado equivalia a dez por cento do inicial.

Nada mal, o que o tempo, esse parceiro, havia moldado. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma batata suculenta do quintal dos vizinhos, daquelas que resistiam teimosas à urbe, numa atitude em que ele próprio si reconhecia, elas tinham, como ele, uma fibra de campónio firme, eram leguminosas catarinas-de-eufémia.

O corpo era um monte de rugas flácidas e tristes. O peso acumulado da responsabilidade foi alisando a postura.
Ancilosado, anguloso, fino, frágil, Silva foi chamado pela enésima vez, tantas quanto o amigo mais cúmplice havia permitido. Estafado, “o Silva” balbuciou qualquer coisa que, no melhor dos cenários, só ele conseguiu entender e cumprimentou, em modo de piloto automático, o presidente do conselho de administração.

O tempo, esse, ia passando por ele e cumprimentava-o, pois eram amigos de longa data.

Em jeito de balanço, para o Dr. Silva, o-aliás-Silva, o-aliás-Zé-Manel, o trabalho já estava terminado, o tempo tinha passado. Mais do que isso, seria armar aos cágados. Seria brincar de Deus.

E o dia, num capricho do tempo, chegou:

— Sente-se, Ó Silva. É preciso que se sente, ó Silva. Ó Silva, parabéns!!!!! Adeus salário, ele foi eliminado. A partir de agora, tudo o que fizer será “Responsabilidade Social”. Silva, a reputação da nossa companhia está nas suas mãos. Satisfeito, ó Silva?
Lasso, frágil, comprimiu e estendeu-se mais do que as leis da física permitiriam fora do fantástico mundo da narrativa. Perdoe o amigo leitor a inverosimilhança, mas era mesmo isso que aparentava. Sentia-se extenuado. Por fim, atingira todos os objectivos delineados. Tentou sorrir:
— Agradeço tudo o que a firma fez por mim. Mas quero passar à reforma.
(a saga continua)

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18 de julho de 2008

Conto do tempo que passa


Sequer no dia da formatura, José Manuel Silva, aliás, Dr. Silva, entrou em euforias.

Por muito que insistissem os colegas do curso, resistiu aos convites para a jantarada de comemoração. Recusava quase sempre a estroinice académica, quando muito alinhava nos fins de tarde de cavaqueira alimentados a caracóis e a imperial, que quase o transportavam ao convívio na loja da aldeia. Não sendo boémio, nem por isso era desprezado, como seria de temer de um rato de biblioteca como ele. A bonomia alentejana, o seu físico frágil e cara de menino atraíam as raparigas, como se de um irmão mais novo se tratasse. As anedotas que contava com aquele sotaque arrastado e os relatos das pilhagens das galinhas lá na vilória da sua meninice divertiam os rapazes.

Não exultou na formatura, portanto, o Dr. Silva. Já os colegas, aliás os doutores, estavam ébrios de alívio e queriam vingar-se da maçada contínua que os anos de empinanço dos calhamaços de contabilidade geral tinham provocado na sua rotina pseudo-boémia. Anos e anos de borgas intercalados, quando não havia mesmo outro remédio, por curtos períodos de um profundo enfado, a empinar calhamaços e a enganar professores, que, as mais das vezes, fingiam não ver as cábulas que davam a volta à sala do exame.

Naquele dia, o dia decisivo, a expectativa era imensa. O silêncio que reinava nessa informal reunião geral de estudantes era interrompido por bramidos alarves de exaltação, à medida que a funcionária da secretaria pendurava nos velhos placares à entrada da faculdade, com exasperante lentidão burocrática, as compridas pautas finais. O grupo dos Abelardos até às Dianas urrou primeiro, seguiu-se o grupo dos Duartes até aos Fernandos, e por aí adiante, até que, chegada a vez da Zulmira, a algazarra era geral (embora a Zulmira não contribuísse para a dita, resignada a novo chumbo a Matemática I, que arrastava na asa como um peso pesado, desde que para ali entrara, há tantos anos que lhe tinha perdido a conta, o que não era de admirar, tendo em conta como se perdia nas outras contas). Uma vez sabido quem penaria pelo menos mais um anito no purgatório da faculdade e quem se livraria daquela tralha para sempre, a euforia começou (juntando-se paulatinamente os primeiros aos segundos, que haveria tempo para melancolias e arrependimentos, agora era hora de comemorar).

Não se sabe quem começou, mas deram por si, nas traseiras da faculdade, cobertas de erva bravia, participando num pequeno auto-de-fé. Numa pira pífia, queimavam com orgulho de cábula os espessos tratados de teoria do equilíbrio financeiro ou de direito comercial que penosamente tinham deglutido nos cinco anos antecedentes (ou, nalguns casos, menos raros do que a sociedade supostamente seria obrigada a tolerar, muitos mais do que cinco, impostos por tertúlias várias e estudos prolongados de complexas cerimónias de tunas e praxes académicas).
A turba queria era equilibrar-se no trapézio até ao fim do percurso, exercer o difícil ofício de conjugar a aprendizagem mínima do deve e haver dos balancetes com as noitadas na 24 a fazer olhinhos às mulheres dos futebolistas em estágio. Reinventar as propriedades farmacológicas do comprimido mágico de modo a que a pílula fizesse o milagre da multiplicação: responderia, por eles, a pílula, o mais depressa possível ao questionário sobre o equilíbrio entre o capital próprio e o passivo bancário, permitiria, a pílula milagrosa, suportar o batuque electrónico do Kremlin até o sol raiar. O dever, isso era por ora um compromisso a longo prazo: era assunto que deveriam lidar com a seriedade devida quando, inevitavelmente, atingissem a provecta, mas se Deus quisesse sempre longínqua, idade dos trinta anos. Quando acasalassem, tivessem o filho da praxe e assentassem na vida. Até lá, conviria passar pela faculdade com o mínimo dano possível. O que importava era o canudo que, aliás, nunca resgatariam das profundezas da Torre do Tombo.

Já Silva, aliás, Dr. Silva, no dia da formatura, sonhava intimamente com o momento em que o resgatasse, o canudo, das profundezas da Torre do Tombo. Para o levar consigo numa viagem, carinhosa e cautelosamente apertado debaixo do braço até ao apeadeiro da aldeia à beira de Serpa, a sua terra natal, onde a vida vai passando, a passo. Sobressaltada e ultrapassada, de quando em vez, a galope, pelas notícias dos vizinhos. É que, no Alentejo, as notícias dos vizinhos correm, muito mais depressa do que a vida.

Ele sabia, pensou de si para si mesmo no sonolento trajecto da Rodoviária, já com o rolo bem agarrado, que o Pinta-Pombos (que traste de moço, pihava os pombos dos vizinhos e pintava-os, marcando-os como seus), o Espanta-Lobisomens (esse era mesmo marado, passeava à noite o cemitério brandindo o estilete de pau), o Fuça-de-Porco (que teve o azar de nascer com a mesma cara da focinheira que se comia aos domingos na loja da Mimosa) e, talvez mesmo até, o Navalha-Afiada (esse era mais metido consigo mesmo, nunca olhava o semelhante nos olhos, passava os dia entretido aguçando a sua ponta-e-mola na afiadeira que ainda hoje o amolador estava para saber como lhe tinha sumido), que eles todos estivessem a beber a mine, como quem não quer a coisa, à beira do apeadeiro.

O Zé Manel, aliás o Dr. Silva (não vá o leitor ser ludibriado na caracterização do personagem principal pelo seu afinco nos estudos), também era rapaz de as beber, as mines da loja da Mimosa, esse minúsculo bazar, poiso de pequenos e graúdos para observar a vida passar a passo, por entre os raspanetes mimosos da dita cuja, também era rapaz de beber o seu copo com os amigos, só que era só nas férias de Verão, que é quando o bom filho da terra a casa tornava e arranjava vagar entre os tratados e livros oficiais de comércio. Os amigos da primária, pensava o Dr. Silva, aliás o Zé Manel, enquanto a camioneta rodava lânguida nas planícies douradas de sobreiro e azinho, lá se estariam entretendo com a garrafita a gelar as mãos, no apeadeiro da aldeia ao pé de Serpa (que, se tinha um nome, era segredo revelado em pequenino a quem nela tinha nascido e muito a custo partilhado com forasteiros).

Mas o Dr. Silva, aliás o Zé Manel, pensando para os seus botões enquanto a rodoviária planava sobre os pastos ressequidos e o cheiro a pó queimado teimava em intrometer-se pelo ar condicionado (que ia funcionando como a camioneta, muito a custo), passaria a toda a brida por entre os braços abertos dos amigos que o quereriam agarrar, num colectivo abraço orgulhoso e, como uma revienga original do avançado promissor que marca o seu primeiro golo pelos seniores do seu Benfica, escaparia aos colegas e abraçaria em lágrimas, e só a eles, os seus dois treinadores, os seus misteres, aqueles que tiveram olho para a sua carreira, aqueles que sempre acreditaram que o rapaz ia longe, para muito longe dali, para um lugar onde o tempo corresse mais depressa. Escapando às garras dos amigos, abraçaria, antes de todos, os seus pais.
Que diriam, na simplicidade da gente do campo, entre lágrimas contidas, “filho, estamos orgulhosos de ti. És um doutor, home. Agora cuida-te, que aquilo lá na capital é uma selva”.

E assim foi, sem tirar nem pôr.

Zé Manel, aliás o Dr. Silva, não precisou de se equilibrar no trapézio, queimou pestanas em vez de calhamaços contabilísticos em piras pífias, não alinhou em tertúlias colectivas, fintou os seus amigos de infância de braços abertos no campo do apeadeiro e foi a correr abraçar os seus misteres à casa chã pintada de cal, onde tinha vindo ao mundo, numa celebração do golo decisivo marcado pelo puto na estreia, em casa, num estádio a rebentar pelas costuras.

Até aí, tudo nos conformes. Tudo de acordo com o plano que tinha delineado. Tudo no tempo certo. O tempo corria, com vagar mas com acerto, como uma boa moda alentejana. O tempo era seu compadre.

Avisado de que Lisboa era uma selva, fez-se de novo à vida na capital, Zé Manel, aliás o Dr. Silva, apresentando-se à entrevista de emprego orgulhoso por dentro, mas bem modesto por fora. Como os melões da terra sem nome à beira de Serpa, bem feiinhos por fora, mas saborosos e suculentos por dentro, assim ia disfarçado, aperaltado e engravatado como um alfacinha de gema, o novo Dr. Silva, pronto a convencer a promessa de patrão.
(Continua)

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26 de junho de 2008

Our NYC


Por três noites, fomos habitantes de Brooklin.
Era um quarto de um hotel de categoria quanto-baste. Como tantos outros hotéis dessa categoria. Bem posto. Bem composto. Mas um detalhe. O detalhe da opulência norte-americana. De um luxo prático e pouco elegante. Enfim, pouco europeu. Uma cama confortável, os pés assentes em alcatifa felpuda. Fofa. Luxuosamente fofa. Tão fofa que, por uma vez, qualquer mortal concede ao dedo mais mindinho do pé a relevância sensorial que ele não teria noutro lugar que não a de um hotel de categoria quanto-baste de opulência norte-americana, esfregando-se, o dedo mais mindinho do pé, contra a alcatifa felpuda. Arrepia, quando um qualquer mortal dá importância ao dedo mais mindinho do pé, esfregando-se na alcatifa felpuda do hotel quanto-baste de Brooklin. Faz-nos sentir em casa, o arrepio do dedo mais mindinho, faz-nos sentir como um cidadão de Brooklin, mais do que as ideias-feitas da Babel multi-cultural de Nova Iorque, mais, se quisermos ser mais blasées, do que um connaisseur que prefere a crueza autêntica de Brooklin ao status de um qualquer endereço nas redondezas da quinta avenida.
A cama, larga. Tão confortavelmente larga como só um hotel quanto-baste de um qualquer subúrbio norte-americano. Os lençóis responsavelmente entreabertos convidando ao repouso de um executivo temporária ou definitivamente solitário, os lençóis de boca aberta convidando sem pudor os amantes apaixonados que lhes calham em sorte, por obra fortuita do sistema informático a que Anny, a negra das ancas largas, dá vida carregando na tecla do computador da recepção. Pede-nos o passaporte e o endereço do próximo destino e, ao mesmo tempo, serve-nos, com uma familiaridade americana, os biscoitos caseiros ainda agora saídos da fornalha. De amora. Fumegantes. Just baked, folks.
Voltando à cama. As camas dos hotéis americanos quanto-baste são tão convidativas. Lençóis engomados dizendo boas-vindas. Para que corpos, solitários ou emparelhados, se enfiem, respectivamente aliviados ou ansiosos, dentro deles. Uma multidão de gente em fila indiana aguardando enfiar-se dentro deles. Todos se sentindo em casa. A casa em Brooklin. Todas as pessoas com corações retemperados quando se enfiam no lençol de boca larga e aberta, a sorrir convidativo. A ocuparem a vaga da fila indiana, uns atrás dos outros, a vida de uns seguida da vida de outros, na casa em Brooklin. Corpos a ocuparem os espaços deixados por outros corpos.
Que entretanto partiram sabe-se lá para onde, eles que apenas há umas horas aqueciam aqueles lençóis de boca aberta. Onde sempre queremos voltar, não queremos sempre voltar a casa? Depois do passeio a 42º C por Central Park. Do desafio da empregada estafada do Starbuck’s da vizinhança, que se surpreende porque não queremos trabalhar em Brooklin se respondemos que sim, gostamos de Brooklin e de Nova Iorque. Do jantar no Grano’s na Village, em que o chefe siciliano nos sicilia em espanholês porque não acredita que um português fale italiano. Mexilhões ao vapor temperados com um branco Friulia Veneto. Lá fora, fumando o cigarro proscrito, a tempestade aterradora irrompe sem aviso. Volta-se à mesa e acaba-se o macarrão com tinta de choco e frutos do mar. E agora, depois da tempestade, apetece voltar a casa, para o sorriso provocante dos lençóis. Apetece voltar, no dia seguinte, depois do almoço no grego, no Taverna, em que ouvimos com discrição, o produtor discutindo com o agente os termos do contrato da tournée pelos cinemas de bairro do novo filme daquele realizador-promessa ainda obscuro. E o que seria se o conhecessem na Europa, suspiram eles entre dois copos de Merlot, brindando. Desfeitas as dúvidas do agente sobre os direitos que possuiria o produtor. Depois do périplo à deriva pelas lojas de autor na Village, bordadas a autocolantes de apoio a Obama. Do minúsculo cemitério judaico luso-hispânico. Dos frapuccinos. Dos mendigos bem-falantes. Do jazz em Central Park. Do nosso cantinho secreto no Battery Park. Das corridas no metro. Das saudações de desconhecidos no metro. Da perseguição aos patuscos school bus, amarelos como os city cabs. Das caminhadas.
Sobretudo depois disto tudo, sabe bem regressar a casa. À nossa casa de Brooklin.
Mas ao quarto dia, partimos, deixando as nossas vidas para trás, cedendo o lugar ao próximo sujeito da fila indiana.
Partimos à hora marcada na Fung Wah Bus, carreira de Chinatown a Chinatown, a de Nova Iorque e a de Boston. Só para conhecedores. Chineses e estudantes, nem um turista. Não há nada que um tuga que se preze mais aprecie do que uma boa pechincha. E esta carreira de chinês sai-nos por um quarto das regulares. Entramos, de sorriso rasgado pelo negócio da China e damo-nos por espertos: o autocarro chinês é um casulo igual a outros tantos. Damos as boas tardes ao motorista de olhos muito horizontais, que nos responde solidente com um good aftelnoon fol you too. O autocarro pejado de saquinhos-para-vómito com instruções em ideogramas mandarins. Um odor indistinto e quase neutro, a meio caminho entre o aceitável e o repugnante.
A cabeça estala, em protesto. Abandonámos para trás o corpo moldado à cidade. E a cabeça grita. Deixámos para trás a cidade que se moldou ao nosso corpo. Deixámos para trás o território desbravado, que se torna incompreensivelmente familiar. Uma metamorfose progressiva de uma geografia desconhecida numa geografia íntima. De súbito, traímo-la, sem razão, a nossa geografia íntima. E a cabeça, naturalmente, estala em protesto. E partimos, a silhueta altiva da cidade que arranha os céus a acompanhar-nos, não nos abandonando por quilómetros intermináveis, acusadora, impositiva. Até que desiste, desaparece de vista, põe-se a milhas. Sem transição, entramos no território impoluto e ideal das florestas e lagos do Connecticut, das suas casas de madeira e barquinhos de vela em cais toscos e naïves. Tão queridinhas, estas casinhas de estrunfes. Uma pausa idílica que devemos aproveitar para inventar uma nova casa, na Nova Inglaterra. A terra das baleias e dos portugueses que as perseguiram. Moby Dick. Enquanto não a caçamos, a cabeça continua a protestar, naquele acampamento oriental em forma de autocarro, a caminho de um novo recolher obrigatório. Fecho os olhos. Procuro repouso. E a primeira imagem que me atormenta a cabeça pungente de dor, vista de Brooklin, é Manhattan, a que nunca dorme, embalada pelo Hudson.

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19 de junho de 2008

Fung Wah

Segue um apontamento de reportagem, um dia destes.

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Born with a gift of a golden voice


De fato e gravata negros, o velho e elegante mobster Mr. Cohen entra em palco, de guitarra em punho, para se defender do público que o aclama na tribuna de Toronto. Desarma-o com o chapéu, que retira galante.

Amiúde pedirá ao público que se sente, porque amiúde este o ovaciona de pé. Ele fica nervoso quando se levantam, explica num tom de falsa timidez, teme que queiram deixar a sala.

Do seu reportório essencial, nada fica de fora. São mais de três horas de concerto, três horas de música, poesia e humor. Negro e charmoso. Refinado e inteligente. Esteve quinze anos fora do palco, até que uma manager qualquer fez o favor de lhe aligeirar consideravelmente a conta bancária e o cavalheiro teve de se fazer à vida. Bendita ladra.

“Democracy is coming to the USA”, canta aquela voz grave e profunda com especial intensidade. Originando, claro está, mais um pedido para a plateia se sentar.

Ninguém acompanha as canções, num canadiano silêncio reverencial pelo autor. Ninguém excepto duas jovens imberbes imediatamente por detrás de nós e dois portugueses que tiveram o privilégio de assistir e de se emocionar com o concerto das suas vidas. Até ao choro. Incomodando os canadianos ao lado.

Mr. Cohen tenta terminar o concerto, bem a propósito, com “I tried to leave you”. Mas não consegue, pois que o público o aclama incessantemente, mal termina a canção. Dá para mais um passinho de tango malandro, ao som de “Dance me to the End of Love” com que havia iniciado.

Depois de uma noite destas, até a asséptica Toronto parecia um lugar singular e emocionante. Como parecerá Lisboa, a 19 de Julho, depois de um concerto à beira-Tejo? Eu estarei lá para descobrir.
Allelujah.

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23 de maio de 2008

Passatempo

Porque espero, e enquanto espero,
Faço uma rima sobre nada,
Não é de amigo, nem é de amada,
Não tem saída, nem entrada,
Anda fugida,
Aturdida,
Enquanto espera,
E desespera,
Ser inventada.
Dou-lhe forma, enquanto espero,
Escrevo-a, porque quero.

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16 de maio de 2008

Acordo Ortographico

Assinalemos para a postheridade este dia funesto.

O Parlamento acaba de aprovar, com os votos favoráveis de quasi todos os deputados da Nação, o Segundo Prothocolo do Acordo Ortographico.

Manchados ficam para sempre os mandatos que o Povo ludibriado concedeu a essa corja de traedores da Língua Mãe.

Mau grado as doutas recommendações de um heroeco grupo de sábios que, remando vigorosamente contra todas as marés da ignorância, subscreveu uma scientifica pethição destinada a pôr cobro a este jaez acordo, foi hoje dada a última machadada no uso acertado da nobre língua que Camoens tornou célebre.

Os auctores moraes deste atentado perpetrado à correcta ortographia serão implacàvelmente julgados pelas gerações vindoiras pelo damno quasi irreparável que provocaram à Lingua Mater, ao colocarem nesse compromisso ao brasileiro a sua polutha assignatura.

Serão um dia erguidas dignas esculpturas aos defensores da nossa identidade multissecular e do nosso riquíssimo legado civilizacional e histórico.

Salve, de entre todos, ó ilustre poetha Vasco Graça Moura, a tua lupta não será van. Toda a rhetorica desses lacaios das corporações edithoriais brasileiras não conseguirá forçar-nos a escrever como almejam decretar. Usaremos até à eternidade a nossa ortographia, por mais que a apelidem de archaica, e o acordo terá o fim que merece: cortado em fanicos, pela thesoura do desuso.

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23 de abril de 2008

Dia Mundial do Livro

Lisboa, Eurásia, 2084.

O mundo está dividido em três países, Eurásia Oceânia e Amerísia, em guerra perpétua entre si.

O Partido tomou conta de todos os aspectos da vida numa incessante tentativa de erradicação da individualidade.

A administração pública encontra-se repartida por quatro grandes ministérios – o Ministério da Verdade, que controla a imprensa, o entretenimento e a educação, o Ministério do Amor, que mantém a lei e a ordem, o Ministério da Paz, que se ocupa das questões da guerra e o Ministério da Abundância, que lida com a economia e finanças. Até a linguagem dos cidadãos é regulada pelo Partido em prolixos regulamentos, despachos, leis e instruções administrativas. As conversas entre pessoas são desencorajadas, em benefício da escrita, para que de tudo fique registo. Apenas a informação escrita é reputada como verdadeira, pois só esta permite uma reprodução fiel e autêntica. A Polícia Intelectual tem como função vigiar e prevenir os crimes de pensamento e manter a cidade no mais absoluto silêncio. Cartazes espalhados em pontos estratégicos, desprovidos de quaisquer imagens, reproduzem slogans imperativos: “A Guerra é a Paz”, “A Liberdade é Escravatura”, “A Imagem é Ilusão”, “O Livro Educa”.

Uma massa uniforme de cidadãos adormecidos folheia passivamente os livros editados e controlados pelo Partido. As ideias mais absurdas encontram eco unânime nos homens desde que constem de uma qualquer brochura. Se está escrito, é verdade. A humanidade deixou de pensar criticamente, mergulhado nas letrinhas pretas em fundo branco, alheando-se do mundo físico que a rodeava.

José Silva encontra-se à porta do prédio onde vive e observa o cartaz da esquina. Em letras garrafais: “A Escrita Tudo Regista”.

Abre a porta e o chão do hall de entrada está pejado de cartas, jornais, panfletos, que o carteiro atirou pela fresta da porta. A sua máquina de fax cospe, como sempre, tinta preta em golfadas mecânicas. O rolo de papel já está no fim, uma única página de grande envergadura enrola propaganda governamental e ordens aos cidadãos. A última instrução é a nova versão do Acordo Ortográfico, que impõe regras universalmente aceites sobre a forma como os habitantes da Eurásia devem escrever. Quaisquer discrepâncias são severamente controladas pela Polícia Intelectual e conduziriam o cidadão rebelde ao cárcere.

José Silva notifica o Partido, pela mesma máquina, de ter entrado no seu domicílio.

Vivia uma vida dupla.

Na aparência, parecia respeitar acriticamente todos os ditames impostos. Mas vivia um conflito interior que o dilacerava. Simplesmente acreditava no que via e ouvia.

No entanto, intimanente descria do que lhe davam a ler, se não encontrava correspondência com a realidade observada. Sentia-se diferente. Receava pela sua saúde psíquica.

Evidentemente, não poderia contar a ninguém a aflição que a noção distorcida que tinha da realidade lhe causava. Nem sequer à sua família, formada pela sua mulher e os dois filhos, de cujas mãos todas as noites arrancava, a muito custo e por entre choro convulsivo, os seus inúmeros livros infantis, quando chegava a hora de dormir.

A sua percepção do mundo tinha começado a mudar quando, num antiquário situado num bairro de má reputação, adquiriu um aparelho do início do século. Como membro do Partido, gozava de uma precária liberdade de movimentos que não era autorizada ao cidadão comum. Era uma pessoa curiosa, e um objecto estranho, uma espécie de caixa grande de plástico com um vidro à frente e uns botões de lado, atraiu a sua atenção. O vendedor não fazia ideia do que se tratasse.

Visitou o seu avô, no asséptico lar do Estado onde este estava depositado até ao fim dos seus dias. O avô, um poço sem fundo de sabedoria ancestral, explicou-lhe, por apontamentos a lápis no velho bloco de notas - não fosse um agente da Polícia Intelectual estar à escuta - que, pela descrição do neto, deveria tratar-se de uma televisão. Aparentemente, este objecto antigo conseguia reproduzir as imagens e os sons de acontecimentos ocorridos, fosse a que distância fosse. O aparelho tinha sido inventado na segunda metade do século XX, tanto quanto sabia e lhe contou o avô, como antes lhe havia contado o avô do seu avô. Sorrateiramente, anotou também no bloco que bastaria ao neto adquirir um vídeo, um aparelho que gravava as emissões da televisão, para que pudesse ver, com os seus próprios olhos, que a Humanidade tinha chegado à Lua. Claro, desde que conseguisse comprar uma cassete bem conservada.

À socapa, apagaram os recados escritos com a velha e gasta borracha que o avô guardava dentro do seu maço de tabaco (adquirida por uma fortuna, tal como o lápis, no mercado negro, pois que o Partido não autorizava quaiquer escritos que não deixassem rasto).

José não descansou enquanto não encontrou e comprou, a dinheiro vivo e sem recibo, obviamente, o aparelho de vídeo no mercado negro. Com cada vez mais frequência, e aproveitando-se da sua condição de membro do Partido, que suavizava a vigilância da Polícia Intelectual, foi-se infiltrando nos meios obscuros do mercado negro. A pouco e pouco, foi ganhando a confiança de sujeitos marginais, e acabou por ser admitido num círculo secreto de sujeitos discretos que, em caves escuras de bairros degradados e marginais, observavam imagens de filmes antigos e programas de televisão gravados.

Numa das sessões, visionaram um documentário sobre um escritor da antiga Grã-Bretanha, um tal de George Orwell, que havia escrito um romance muito popular, intitulado “1984”. Esse romance, certamente uma obra encomendada pelo Estado, conseguiu convencer os cidadãos de que um mundo dominado pelo audio-visual seria um mundo de alienados, controlados pelo poder político. Ironicamente, tratava-se de um livro hoje proibido pelo Partido.

Mas aquele grupo de subversivos estava decidido a combater o jugo do mundo irreal difundido pela palavra escrita. Tinham jurado, secreta solenemente, promover clandestinamente o audio-visual e combater, com a vida se preciso fosse, a literacia dos cidadãos.

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9 de abril de 2008

Retalhos da vida de um consultor

(Louvado seja o leitor que aguente um post deste tamanho. Já cá não escrevinhava vai para mais de um mês, agora é dose.)

Enquanto percorro a passo de caracol o viaduto Duarte Pacheco, ligo a TSF e oiço, com a atenção que a personagem merece, a última invenção do Luís Filipe Menezes para animar as hostes dos seus correligionários, parece que o homem vai conquistar o poder fazendo do PPD um partido à imagem do Alberto João. Depois escuto, com a atenção que a personagem merece, um não-sei-quantos-qualquer-coisa do partido do governo afirmar que o Luís Filipe Menezes, “esse paladino da liberdade da imprensa”, teve o descaramento de estar presente no congresso do PSD-Madeira, logo agora que os laranjas autonómicos decidiram fechar a porta de tão disputado e emocionante evento aos jornalistas. Sobre os elogios do cara-de-sapo ao ex-Bocassa da Madeira, este tal não-sei-quantos-qualquer-coisa comenta que o PS não comenta declarações de órgãos institucionais no âmbito de funções institucionais.

Desligo, pois, o rádio e observo os colegas de fila. Passo por uma secretária de direcção que penteia as sobrancelhas ao retrovisor, retoque que denuncia, penso eu com os meus botões para me entreter, a secreta esperança de que os olhinhos que ela faz ao chefe sejam finalmente notados e enfim lhe faça o convite para um fim de semana naquela Pousada de Portugal que saiu no último número da Evasões.

Ultrapasso em passo lento um mercedes-classe-s último modelo onde um sujeito bem apetrechado de relógio de bracelete de prata e botões reluzentes de punho enfia o seu anelar esquerdo, provido de aliança de ouro, pela narina do lado de cá, em gestos circulares de uma meticulosa higiene exploratória, enquanto a sua mão direita encosta o seu bojudo e reluzente aparelho celular, carregado de WAPS, GPS, e-mail, 3G e demais gadgets do último grito da tecnologia, à sua orelha direita, que, se for simétrica, como é de prever, à orelha esquerda que não resisto a observar, será pelo menos tão avantajada e peluda como esta. Lá longe, e nunca mais fica mais perto, o écrã gigante do fim da auto-estrada de Cascais fere os olhos da multidão de sonâmbulos condutores suburbanos com ticks das manchetes dos matutinos e spots promocionais da nova telenovela da TVI.

Finalmente rolo a quarenta à hora pelo túnel do marquês (porque ninguém quer ser multado por andar a mais de cinquenta). Quatro fugas, vindos da estátua do nosso déspota iluminado, aceleram bruscamente mal a silhueta do minha carrinha assome à boca do túnel, antes que eu tenha a audaz ideia de entrar à sua frente na fontes pereira de melo. Eu que espere, que a faixa de rodagem é o seu reino. E eu espero, claro, entupindo, atrás de mim, a saída do túnel, e levando, como justa consequência da minha urbanidade inadequada, com um merecido e valente buzinanço do colega dos outros quatro, que também calhava estar de serviço e que levava um cliente apressado no regaço do seu mercedes com trinta anos.

Chegado finalmente ao parqueamento ao lado do escritório e largada a carripana, cruzo-me com o simpático e jovem cidadão das terras de vera-cruz que (o pobre) imigrou para terras lusas tão só para cuidar como caixa do estacionamento do saldanha residence. Com a sua caracetrística voz de falsete, deseja-me um colorido “um bom djia dji trabálho, sinhô Tchiagô”, com aquele sorriso derretido que não procura disfarçar a segunda intenção.

Subo o elevador ao som enjoativo do Jon Bon Jovi e sento-me à secretária, onde o meu pálido colega do lado, perito em créditos, débitos, movimentos contabilísticos e amortizações extraordinárias do activo imobilizado corpóreo, debita-me, como todos os dias, a automática, mas plena de bonomia, expressão:

Então, Tiago, que tal Tiago, tudo bem? Tudo bem, Tiago.”

Sem que eu lhe tivesse retorquido, é certo, mas o tipo dá de barato, sem estar longe da verdade, que eu lhe quisesse polidamente perguntar se também com ele estava tudo bem. Também ele, que tal, me deseja um bom dia de trabalho. De seguida, liga a um cliente e oiço:

Então, fulano, que tal, fulano, tudo bem? Tudo bem, fulano.”

Com esta, eu, que havia acabado de me sentar, levanto-me para um café no bar do escritório.

Aí, os meninos discutem a arbitragem do fim de semana e as meninas a fantástica deslocação ao IKEA ou o bolsar nocturno do bebé. O sócio de outro departamento cruza-se comigo, pergunta se “está tudo fixe”, para parecer um gajo bacano, e deseja-me, pois claro está, um bom dia.
Mais precisamente, um bom-dia-de-trabalho.

Devo dizer, com toda a franqueza e sem querer ofender ninguém, que já não aguento estas simpatias anódinas. Se se afastassem com uma saudação simples, como fosse “tchau”, “passar bem”, “vai à merda, porco suíno”, mas não, têm de proferir mediocridades neutras como “tem um bom dia de trabalho”. Mas quem lhes meteu na cabeça que a minha concepção de um bom dia passa por um jorna de cumprimento íntegro dos meus deveres laborais? Porque não estar antes virado para um óptimo dia pessoal e um dia laboral, digamos, rigorosamente merdoso?

Depois de uns quantos e-mails e infrutíferas tentativas de pagamento de honorários que me fazem sentir o cobrador do fraque, munido deste amargo estado de espírito matinal, desço para fumar um cigarrito lá em baixo, com vista para o mar de beatas que jaz sobre o asfalto da casal ribeiro, largadas pelos anónimos drogados de escritório, meus semelhantes.

Aproveito, já agora e en passant, para comprar o jornal desportivo, na expectativa de uma uns momentos de descanso intelectual passados a ler crónicas imbecis sobre o complexo mundo da bola, no acolhedor sossego do WC.

Aguarda-me mais uma fila.

Uma rapariga brasileira compra cartões telefónicos e pergunta pelo plafond, não entende nada do que o empregado responde e são tanto os seus perplexos “oi?” que a fila cresce imparável atrás de mim. Com isto, é já meio dia. O rapaz imediatamente atrás da minha pessoa lança os mais vulgares impropérios, à moda do Caixodré.

Mas que merda esta, dasse!”

Disfarço enquanto coço um olho, viro-me para o tipo, a ver o que se passa. Ele olha colérico para o telemóvel e tecla furiosamente, como se a sua intensa expressividade oral e gestual pudesse ter como consequência provável desencadear nos circuitos internos da geringonça um milagre da física. Como se lançasse uma faísca repentina que tornasse possível a almejada comunicação à distância para a qual o aparelho foi supostamente concebido.

Foda-se, merda de telemóvel, ó c…!”

Toda a fila, sem mais nada para fazer, pelo menos enquanto a brasileirinha recém-imigrada prosseguia com os seus loquazes e grandiloquentes “oi???”, olhava de soslaio para o desesperado rapaz.

A brasileirinha finalmente entende alguma coisa deste Português sem vogais, larga o poiso e avança a fila.

Avançando consequentemente também ele um lugar, o petiz consegue apanhar uma réstia de rede disponível naquela cave de centro comercial. Mal é conseguida a ligação, o tom de voz repentinamente baixa e adocica.

Estou, mãe? Mãe? — reverente e animado — Que saudades, mãe! Olhe, estou aqui perto, mãe! Há almoço para mim?

Pronto, está tudo explicado: era fome, o pobrezinho.

Mas uma fila tem muito que se lhe diga, ou que se lhe escreva. Uma singela fila dá pano para mangas. Basta observar, em vez de simplesmente ver.

À minha frente, o sujeito, temporariamente ao serviço nas obras do escritório do quinto andar do edifício, trajes de rude trabalho braçal contrastantes com o fatinho completo dos escriturários que o rodeavam (trajes mas não só, pois que o odor também era característico de um tipo de labor de carácter mais intensivo), protestava com o preço dos bens que pretendia adquirir: A Bola, o Correio e um maço de Marboro Vermelho (assim mesmo, Marboro sem “l”):

Cinco euros e dez”, informa o plácido empregado do quiosque.

Cinco éros e dez????”

Sim, amigo, cinco euros e dez.”

Atão, mas a quantos éros está o tabaco e o jornal?”

“Ó amigo, o tabaco aumentou, agora está a três-quarenta-e-cinco”

Três éros e quantos???”

Ai o c… Levemente desesperado com a espera, e sentindo que o empregado não estava a ter um bom-dia-de-trabalho, acometeu-se-me um raro gesto de solidariedade e fui em socorro do pobre do assalariado. Dirijo-me, cara a cara, para o honesto homem das cavernas e explico:

“Ó amigo, o tabaco está a três éros e quarenta e cinco ramazotes. Por isso é que a conta é de cinco éros e dez ramazotes”.

Vá lá que só o assaliariado percebeu a gracinha de burguês armado ao pingarelho. O trolha bem servido de musculatura não percebeu, mas pagou. Sem ressentimentos, espero que tenha passado um bom-dia-de-trabalho.

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