2 de fevereiro de 2009

Retalho



Abandono o pátio a uma hora insolitamente matutina, o selim da bicicleta cintila de geada. Fecho bem o capuz com o cachecol, exalo fumo, esfrego mãos e, ala, pedalo pelo asfalto prateado de orvalho. Rola e rola a roda, a corrente ruge de ferrugem fazendo-me companhia pelas ruas ocas. A Cerca Moura perdeu o ponto de fuga, este Tejo abraçou-a numa nuvem grossa e cinzenta, um hipopótamo de vapor chegando-se a ela como se lhe portasse um recado de Poseidon. Nela mergulho e, como São Vicente e os seus corvos, também eu desapareço. Desço às cegas a colina, os trilhos do 28 servindo-me de cão-guia. Muito para recordar, muito cedo para sentir. Lisboa, assim vestida em brumas, é furtiva como uma amante. O ar está gelado e com os olhos em lágrimas de vento busco algum indício. Para lá do velo, vislumbro um varandim, a que se segue outro, aqui uma portada se abre, uma janela aguarda que lhe subam o pano, para que a peça deste dia de Janeiro se encene. A vitrina de um café ao pé da Sé mostra a primeira fornada, mas não só. Nela se encosta o meu reflexo: conturbado, revolto, sombrio. Eis os despojos da noite sem nome, aquela que agora começo a recordar com o fôlego suspenso, um novelo de arame na garganta, a face rubra de vergonha. E enquanto o nevoeiro levanta desnudando a cidade dos seus pudores – vergonha! –, outro vulto se fixa na vitrine: comeria com os olhos o produto fumegante da pastelaria ou sondaria no meu olhar a marca do delito?

8 comments:

Garf 3 de fevereiro de 2009 às 10:51  

Desculpa, mas não resisto: descer "às cegas a colina até à Sé" (de bicicleta), "fazendo os trilhos do 28..." é tralho certo. É natural que na vitrine do café se encoste, não o teu reflexo, mas toda a tua fronte. E a face corada não era de vergonha: devia ser sangue mesmo...

Tiago 3 de fevereiro de 2009 às 11:29  

Leitor atento, estes é que são bons... :)

Nostalgia 4 de fevereiro de 2009 às 23:47  

"Lisboa, assim vestida em brumas, é furtiva como uma amante."

Nova cara...qualidade de sempre...

Natasha 6 de fevereiro de 2009 às 09:42  

Então foste tu que roubaste o novelo de arame do recreio do sol.

e o sol continua de castigo, no armário das nuvens.

beijo

Rosa 6 de fevereiro de 2009 às 10:08  

Lisboa assim fica irresistível.

Tiago 6 de fevereiro de 2009 às 12:03  

Obrigado, Vertigo. Ups, Morrer em Magenta, queria eu dizer. Está já tudo inventado, Natasha... Ela é irresistível sempre, Rosa. Basta olhá-la como se fosse o primeiro dia.

Rui 6 de fevereiro de 2009 às 12:10  

Sempre me impressionou a curva que dá entrada na Rua das Escolas Gerais. Volto sempre. Impressionável.

Tiago 6 de fevereiro de 2009 às 15:26  

Rui, vivi aí muitos anos. Em corpo, nunca lá mais voltei.

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