Retalho
Recolhe as moedas todas espalhadas pelo passeio e pára de desafiar os transeuntes com aquele olhar de incriminação, a rapariga dos sapatos descascados e das roupas dois números acima da sua actual medida. De súbito, rompe num pranto e pede-me cigarros (em vez das moedas que me enchem o bolso pequenos dos jeans importunando o osso cujo nome desconheço, aquele que fica na esquina da anca). A mudança de alvo terá sido provocada por uns sujeitos que se aproximam, apercebo-me quando a rapariga se enrosca nos seus trapos e, com um arrepio, lança o canto do olho para os dois impecáveis polícias que cirandam ali pela esquina com os seus asseados uniformes azuis: pensará a rapariga estarem fazendo ronda aos seus metaizinhos preciosos e em serviço a bófia pelo menos ainda não fuma, tal mancharia a limpeza da corporação, o que não quer dizer que não roube, e a rapariga essas coisas lá terá aprendido nas aulas que a rua lhe deu, treinando-a para desmascarar o perigo, use ele o disfarce que lhe aprouver, que mil formas toma o Diabo. O vagabundo que lhe faz as vezes de um parceiro insiste em soltar-lhe imprecações ininteligíveis (que a rapariga visivelmente compreende) não satisfeito por lhe ter aplicado um violento pontapé no caixote de cartão castanho onde antes jaziam as economias (comuns?) recolhidas ao longo do dia. Finalmente vai-se, numa ira tamanha, sei lá eu porquê (sabê-lo-á a rapariga dos olhos de gato, mas entre marido e mulher, já dizia o outro).
Aproximo-me dela e faço como se me fosse sentar.
"Posso?" – indago com deferência, a modos de quem pede para entrar no hall da casa.