3 de novembro de 2008

Um conto do imprevisto

(Cont.)

O cavalo, entretanto, acaba de engolir a pasta verde que lhe enchia a boca e agora, por um interminável segundo, volta a olhar, sem ver o horizonte. Baixa a cabeça com parcimónia (movimento que é seguido pelas moscas que não há modo de lhe largar as orelhas), esfregando a boca no chão húmido para se livrar de umas flores bonitas que lhe haviam ficado entaladas entre os dentes.

Amélia estava prestes a morrer uma vez mais quando o leitor faz uma pausa no drama, deixando-a suspensa, mas nem por isso expectante, consciente do seu inevitável destino. Marcando a página com intenção de lá voltar, o leitor fecha o livro e abre um exemplar raro da revista “O Cruzeiro”, saída ao prelo nos idos de 16 de Abril de 1878. Faz fé no que agora lê, com a consideração que lhe deve o prestígio do mestre Machado de Assis: numa crítica aí publicada, Machado de Assis, das alturas do Olimpo Literário que conquistou, profere a lapidar sentença, publicada preto no branco e constante de folhas: «“O Crime do Padre Amaro” é imitação do romance de Zola, “La Faute de l’Abbé Mouret"».

Em consequência, o leitor abandona definitivamente a leitura de “O Crime do Padre Amaro”, faz um esgar de desprezo e solta o livro às labaredas da salamandra com que aquecia os pés, condenando Amélia a uma morte desta vez diferente. Antes de sucumbir às chamas, Amélia pensa como desejaria conhecer a irmã francesa inventada por Zola e de quem nunca antes tinha ouvido falar.

Francisco Mendes está prestes a sair do bar quando, numa prova de que a vida é feita de acasos e imprevistos, a equipa visitante, de fracos pergaminhos, realiza uma daquelas proezas de que o futebol é fértil e que fazem dele um desporto de multidões. Contra todas as probabilidades, o trinco dos visitantes, cujos dotes técnicos se resumem no justificado epíteto de “carrega-pianos”, faz um movimento de ruptura que deixa os bem mais dotados atletas da equipa caseira pregados no relvado, de tal modo que o central da equipa hóspede, ferido no orgulho, derruba a pés juntos o adversário. Livre directo, último minuto da partida. Francisco Mendes olha para o televisor e dá um último gole no scotch. O livre é bastante mal cobrado mas o esférico é lançado numa improvável órbita que desafia as leis da balística. A bola ressalta nas costas de um defesa, o guarda-redes não consegue calcular a trajectória ziguezagueante, indo o esférico embater com estrondo na trave e de novo numas costas de um jogador caseiro, agora do guarda-redes, entrando consequentemente na baliza defendida pela equipa da casa e fixando o resultado final: um inacreditável zero um.

O lance incaracterístico e improvável é tomado por Francisco Mendes como um sinal: sai do bar disparado para a estação de comboios, nem sequer passando pelo apartamento para recolher os seus parcos haveres, e aí compra um bilhete só de ida para o apeadeiro transmontano.

A composição atravessará, manhã cedo, um pasto onde um cavalo velho vê a refeição interrompida pelo ruído do monstro circulante. Francisco Mendes, nesse preciso momento, está à janela, mirando o vazio com um olhar fundo, que parece preenchido de tudo o que não vê, como se os montes que lá ao longe o contemplam impregnassem o mirar humano do sentido da insignificância. Repara, contudo, na figura triste de uma pileca e parece-lhe (não sem incredulidade), que o animal baixa a cabeça à sua passagem, como que cumprimentando com sábia familiaridade um ser que, bem vistas as coisas, com ele partilha muito mais profundas semelhanças do que as anatómicas diferenças que aparentemente os separam.

1 comments:

Porfirio Silva 3 de novembro de 2008 às 19:12  

Parabéns pela pintura da casa. Não é que a anterior, sóbria, não fosse bonita. Mas é sempre excitante entrar e ver os móveis todos mudados e uns candelabros novos e uns livros em sítios que chamam outra atenção.

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