26 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

Máxima tardava a responder. Nunca o chegou a fazer. Ia abrir a boca e assim a teve de deixar ficar, suspensa pela expectativa. Sentiu que voava, num improvável salto a galope. De boca ainda aberta, saltou do banco, sem apoio, tentando agarrar-se a qualquer coisa, a sua mão não conseguindo melhor do que fechar-se no ar vazio. A boca sempre aberta, fechou os olhos com força, a mesma força que gostaria de usar para fechar os ouvidos, se ao menos Deus tivesse assim concedido ao homem mais essa vantagem competitiva. Tal serviria para calar a singular orquestra composta de inconcebíveis guinchos de pneumáticos e terríveis acelerações de motores pairando no vácuo. Seguiu-se um som surdo de uma pancada, o baque da sua própria fronte contra uma parede de vidro estilhaçando-se, seguido de um silvo crescente, o som do seu corpo deslizando com o impulso por entre as finas moléculas da atmosfera. Transformou-se pois num projéctil humano disparado para o vazio, de tal modo que naqueles instantes nada via para além de um túnel de luz ofuscante à sua frente, sem que lhe vislumbrasse fim. Naqueles intermináveis momentos voadores, sentiu-se, como nunca mais se sentiria, independente, feita de si mesma, incomensuravelmente distante de tudo.


Pausa. Vazio. E pausa. E vazio.

Algures, o ruído de metais retorcidos por uma pancada brutal conseguiu penetrar de novo na sua consciência.

Voltou a si deitada num cama húmida de urzes, olhando para o cadáver de um automóvel, rodas viradas para o firmamento que não cessavam de girar, fumos saindo de entranhas mecânicas quebradas. Em contraste com a visão dantesca, o que agora ouvia era apenas o gotejar tranquilo da chuva morna que se esvaía, como ela, no cómodo tapete de musgo e urzes a que tinha ido parar.

O terror imobilizava-a. Não lhe doía nada, ainda que sentisse o gosto doce do sangue que lhe descia do nariz até aos lábios por acção lenta da gravidade. Deixou-se ficar quieta, fazendo por crer que tudo aquilo era um sonho.

7 comments:

Nostalgia 26 de outubro de 2008 às 16:11  

http://www.youtube.com/watch?v=z_2lWictvZM

Muito bem...

SC 27 de outubro de 2008 às 19:07  

Então mas o carro não estava parado? Acho que me escapou aqui algo.

Tiago 28 de outubro de 2008 às 11:33  

Vertigo, é curioso saber que a minha escrita casa bem com o som lúgubre do Adolfo Luxúria. Sc, é que estes retalhos são isso mesmo, apenas excertos (e já de si se calhar longos demais para o blog típico) de uma coisa mais longa. O carro entretanto arrancou e muita coisa aconteceu pelo meio. Mas obrigado pela atenção, que o texto não está livre de incongruências (ainda ontem ao lerem-me o texto em versão "mais integral" chamaram-me a atenção para que a Máxima não podia ser casada e ao mesmo tempo mãe solteira...). Erros de principiante.

SC 28 de outubro de 2008 às 11:56  

Também me ocorreu que este retalho não estivesse relacionado com anterior, mas como termina com uma pergunta e este começa com um "tardar em responder", baralhei-me. Sorry. Obrigada pela explicação.

Nostalgia 28 de outubro de 2008 às 17:23  

gosto da nova cara do wordaholic. Parabéns.

Tiago 28 de outubro de 2008 às 18:49  

Agora é que está, Vertigo.

Nostalgia 28 de outubro de 2008 às 19:09  

Ainda melhor. Mais português.

;)

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