20 de outubro de 2008

Retalhos de uma vida ficcionada

“Ao menos quando ela chegar não se vai pôr com temores de ser vista por coscuvilheiros. Quando está receosa fica danada, faz-se difícil”, pensou.

Se é que ela viria. Henrique pensou se estava impaciente por que ela viesse ou porque não aparecesse.

Olhou para o seu relógio: pouco passava das sete, mas o breu era opaco. O Outono tinha chegado sem aviso.

“Dou-lhe mais um quarto de hora”, disse para si próprio, “depois disso vou para casa e ela que se amanhe com quem lhe faça outro filho, a começar pelo impotente do marido, e que sustente o que já por cá anda. De qualquer modo, começa a perder o viço”, num monólogo consigo mesmo.

O relógio da vila tinha acabado de soar as sete e um quarto e Henrique, determinado em cumprir a jura que se havia feito, rodava já a chave da ignição, quando lhe pareceu vislumbrar alguém aparecendo por detrás da esquina do edifício. Desligou o motor e apagou as luzes. Seria ela?

Ela viu-o e apressou o passo na direcção do automóvel, rodando o pescoço para trás de quando em vez, à cata de testemunhas inoportunas. Não vendo ninguém, chegou-se com cuidados ao grande Mercedes preto.

Henrique saiu e abriu a porta do lado, um tudo-nada antes de tempo, precavendo Máxima da impaciência que a espera tinha provocado ao amante. O lavrador não estava habituado a depender dos outros.

Já Máxima, mãe solteira na época em que elas não existiam senão por obra do Demo, dependia totalmente dos outros, particularmente do pai do seu filho.

Dependia de Henrique Redondo e de quem lhe calhasse por sorte ao caminho: a propósito, Máxima não podia revelar ao seu amante que a demora devera-se aos avanços atrapalhados do director da fábrica a que ela fingia ir resistindo, num jogo do gato e do rato em que a presa é, evidentemente, o suposto caçador.

Ao longe, no ponto onde o caminho de terra se unia à estrada municipal remendada de asfalto, passou um vulto. Os amantes esperaram em silêncio, ansiando que o sujeito não notasse o carro camuflado sob a copa baixa dos pinheiros mansos. O vulto entrou no seu carro, estacionado no parque da fábrica, ligou o motor e fez-se à estrada.

“Quem era aquele?”, inquiriu secamente Henrique.

1 comments:

Nostalgia 22 de outubro de 2008 às 01:27  

Adoro estas fracções da tua vida ficcionada...

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