17 de setembro de 2008

Coisas do bloco de notas

(cont.)

Terei saído porta fora e os carros terão passado ao largo sem que lhes saísse fumo dos bofes, as crianças recém arrancadas ao leito terão feito idênticas birras de sono expressando guinchos sem que um berro lhes saísse das goelas estridentes, uma cadeia em série de mães terá ameaçado a palmada no rabo com a mão aberta, irrompendo-se-lhe esgares mudos de impaciência, o cão vadio que mora debaixo do cornijo na esquina terá mijado no pneu da carrinha abandonada sem que nascesse o riacho delimitador de território canino. Da boca desdentada do vendedor de cautelas, hoje cerrada, sai um pregão, incrivelmente mais sonoro, mais límpido, que atrai as atenções dos transeuntes, que augura TANTOS-MIL-EUROS-SEXTA-FEIRA-ANDA-A-RODA. Hoje o pregão saiu com voz de Manuel Alegre, como se a sorte da nação se confundisse com a sorte da taluda. O painel electrónico estacionado em cima do viaduto, virado para a centopeia com rodas no lugar de patas que entope este carreiro, também esse ofusca tudo, cintilando ESTREIAS e FINAIS DE TELENOVELAS e respectivos PATROCINADORES e EXPOSIÇÕES e concernantes FILANTROPOS.

O chumbo atmosférico mói, dissolve as coisas de que o quotidiano citadino era feito.

Menos a publicidade.

Quero lá saber.

E começou, o dilúvio, como parecia estar escrito, nessa manhã em que um Inverno tomou de assalto o Verão de calendário, sem pedir licença.

E eu sem guarda-chuva.

Nesse preciso momento, escorrego.

Escorrego e deslizo, sobre um mar de folhetos publicitários que jazem na rua, caídos do céu metálico. O asfalto está grávido de celulose.

A camada de papelada empilha-se progressivamente e os limpa-neves (não os sabia nos arrabaldes de Lisboa, mas que sei eu) chegam de imediato e não lhe dão meças, as máquinas também escorregam e deslizam.

Aos folhetos fininhos de publicidade, pequenas lâminas de barbear que esfacelavam os guarda-chuvas dos vizinhos previdentes, sucedem maços de jornais atados por cordas como se empacotados para os diversos quiosques de esquina. Peguei num deles, que me tinha caído com estertor de dilúvio a poucos centímetros do meu corpo, só por acaso não me levou desta para melhor, ou para pior, o que sei eu, e não se tratavam, afinal, de jornais, seriam grossos catálogos de publicidade, viagens em promoção a seguros e catalogados paraísos que cantam, e esses amanhãs anunciados chovem magoando os transeuntes incautos.

Os dias passam e a tempestade amaina, mas não pára. Uma contínua e modorra chuva de modestos mas insistentes folhetos publicitários mantém-se, molhando parvos, acabando por cobrir toda a via pública, uns centímetros primeiro, uns metros passados uns dias. Ao quinto dia de chuvisco publicitário ininterrupto, a papelada chega ao terceiro andar do prédio dos arrabaldes, o estado de calamidade pública foi decretado e o trânsito cessa, deixa de haver condições para a circulação automóvel, os sub-urbanos voltam aos abrigos, e, com eles, a centopeia com rodas no lugar de patas regressou ao casulo deixando o carreiro livre à PROPAGANDA. Ao menos o ruído dos escapes, rotos, remediados ou duplos, cessou, substituído porém por estridentes ANÚNCIOS sonoros a todo o género de PROMOÇÕES, vindos nitidamente da nuvem que não havia meios de embranquecer, nem com o DETERGENTE LAVA-MAIS-BRANCO que os obuses do exército lançavam inclementemente na sua direcção, sem resultados visíveis.

Vá que não vá que vivo num andar alto.

Pela primeira vez na história a televisão passava, a-verde-e-branco, o boletim meteorológico da publicidade.

E ao sétimo dia, a tempestade desabou. Granizaram todos os livros que já ninguém lia, arrastando tudo à sua passagem, rios de papel velho pareciam vingar-se do esquecimento, cascatas de filosofia existencial justificavam a sua existência. Chegaram ao meu andar dilúvios de caderninhos, daqueles de apontar notas, revestidos de cabedal preto, MOLESKINES, milhares de MOLESKINES empilhavam-se até ao meu piso, a janela quebrou-se sob o seu peso, abri um, antes que me afogasse na torrente de caderninhos de cabedal e reconheci, no átomo de segundo que restava da minha existência, naqueles gatafunhos a minha impressão digital, aquela era a minha letra.

Morri, pois, sufocado de milhares de MOLESKINES cheios de inutilidades apontadas por mim.

Morri.

Reencarnei arfante, ridiculamente perturbado, perante a luz laranja que afagava as pálpebras fechadas, anunciando o calor de uma manhã de Verão, como tantas outras.

Os discípulos daquele velho austríaco que expliquem o pesadelo, se quiserem fazer de mim um caso clínico. Por mim, estou-me nas tintas para simbolismos oníricos. Faz-me feliz, esta luz morna de Lisboa que me invade o quarto.

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