31 de julho de 2008

Retalhos da vida de um consultor

Ao almoço, os colegas demonstram o seu fino gosto literário: apreciam deveras Miguel Sousa Tavares, John Grisham, Margarida Rebelo Pinto e José Rodrigues dos Santos. Faltou o Dan Brown para completar o ramalhete, decerto porque a esotérica cá do escritório está de férias, relendo aquela coisa que elege o walt disney como o da vinci dos tempos modernos. Depois de um arrotinho de bebé proferido ao de leve, que a ninguém perturba, coitadinho, pois se ele sempre pede com licença, o sujeito tão simpático, tão enorme, tão suadinho, tão rosado, tão esburacadinho, questiona os demais sobre as deslocações cinematográficas dos outros tantos, ao que o então-que-tal, tudo-bem?, tudo-bem, que acaba de entrar com um simpático então-que-tal, tudo-bem?, tudo bem, retorque na que desde que se lhe nasceu o rebento, nunca mais foi ao cinema, a não ser, é claro, para assistir babado na companhia do seu sucessor aos grandes êxitos da dreamworks e estúdios disney, ao que a rapariga que faz tão bem as contas, tudo bem apontadinho, as tardes de sexta-feira a contabilizar os recibos de despesas que isto de trabalhar para aquecer é que não, informa que não vai de férias para a praia que o sol lhe dá comichões, fica cheia de borbulhas a pobre, em especial aqui no peito e no tronco, aqui no tronco, diz, explicando gestualmente, muito embora as mãos apontem o antebraço, outro comenta o jantar de empresa no faz-figura, que como o nome indica deu a impressão de só fazer figura, diz, aquilo era tudo "nova cuisine", era só apresentação, mas pouca substância, vá lá que o chefe é que pagou o balúrdio, para o ano há-de ser no fuso na arruda dos vinhos que aquilo é que é comer, posta de bacalhau do alto e costeleta de novilho, nem cabe no prato, e o chefe que manda cobrar ao cliente, e o cliente que não paga, e as reuniões de balanço, e os objectivos para o ano, o time bilding e coiso e tal, e se já vimos o porche novo do chefe, e eu comprei agora um plasma, que é para ver o indiana jones que baixei ontem da nete, e o então-que-tal saca da pastilha e masca-a com prazer, degustando cada reviravolta da shuingue game, que eu bem sei porque bem oiço, cada chupadela é de alto gabarito, e até parece que, sim, até parece que o então-que-tal, tudo-bem?, tudo-bem está regressando à infância, o pobrezinho, tal é o prazer com que ele revolve a borracha lá nas suas profundidades odontológicas, tanto que agora, ó supremo gozo, oiço com alarido o balãozinho a rebentar, trás!, ele há tanto tempo que eu não ouvia a pastilha a elasticar, a elasticar, até rebentar, e agora aspira os rebordos da dita de volta para onde a rebelde nunca devia ter saído, de volta para a sua boquinha, oiço tudo isto, e de volta à toca lá recomeça o ciclo, que nada se perde e o barulho pueril do então que tal perturba-me, confesso, não suporto, não aguento e para esta maçada toda só me parece haver uma saída:


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23 de julho de 2008

Conto do tempo que passa (o dramático epílogo)

O patrão não compreendeu:

— Mas ó Silva, sente-se bem, ó Silva? Agora que está sem salário? Não está satisfeito? Falta pouco para que tenha de pagar para pertencer ao quadro. Desprezar décadas de esforço dedicado? Não está satisfeito? Ó Silva, pense lá? Reconsidere! O que me diz?

A emoção e o cansaço acumulados impediram qualquer resposta.O Silva afastou-se, sem ruído, como folhas voando ao vento. O peito sucumbiu ao peso dos anos. A tez perdeu qualquer cor. Os membros recolheram. A estatura aplanou de vez. O corpo despiu-se da humanidade, tornou-se físico, concreto, diminuto, quadrado.

Silva, ou o que restava dele, não quis pensar em mais nada. Num último estertor do homem que tinha sido, fez por não sonhar com uma sonolenta viagem da Rodoviária e com o Pinta-Pombos, o Espanta-Lobos, o Fuça-de-Porco e, mesmo até, o Navalha-Afiada. Que estariam à sua espera, bebendo a mine, como quem não quer a coisa, à beira do apeadeiro de aldeia celeste, a caminho de sabe-se-lá-onde, onde o raspanete mimoso de uma Mimosa os esperasse esperançosa. E uns pais o mimariam ainda mais, pais que, com o tempo, pareciam avós, aliás, bisavós, aliás trisavós, aliás, a origem de todas as coisas.

O Dr. Silva, aliás, o Silva, aliás, o Zé Manel, aliás, o-não-sei-o-quê, desistiu.

A transformação, com o tempo, completou-se. O chefe pegou no livro mercantil, folheou-o distraidamente e colocou-o (ao Silva, aliás, ao livro) na prateleira. E para ali ficou, para sempre.


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22 de julho de 2008

Conto do tempo que passa (II)


A estratégia resultou e logo o Silva foi engajado. Entrou alentejano, saiu escriturário. Num ápice.
Um ápice lisboeta. Foi um instante que nem deu para saborear, e então foi ao café da esquina, a “Flor de Santarém”, beber uma lambreta ao balcão de fórmica e tagarelar sobre nada com o escalabitano emigrado na urbe, que um tipo que entende tanto de touros também há-de entender um alentejano. Ergueram brindes à vida, à saúde e ao futuro.

No dia seguinte, o Dr. Silva, aliás “o Silva”, para o patrão, entrou ao serviço.

Com uma perseverança cautelosa e rude, foi dando de si para além do que podia e foi bebendo do que os colegas do lado lhe iam ensinando, mais do que se apercebiam. E não, obrigado, ia todos os dias inventando desculpas que não podia almoçar, que a sua firma (pois que a firma amiga do patrão amiga sua era) tinha de encerrar o ano e mais tarde havia tempo para a almoçarada, que havia um balancete para fechar, que o livrete estava caducado, que o imobilizado não tinha sido abatido com a dignidade que um inválido merece.

O tempo passava, e o tempo parecia correr de feição.

Ao fim de um ano, o patrão chamou-o ao santuário. Ao gabinete do patrão, nem mais nem anteontem. E que era para já, se não fosse incómodo para o Dr. Silva, aliás, “Ó Silva”, “ó Silva, desculpe lá se interrompo, mas tem de vir já o meu gabinete, que é tempo de avaliações.” De súbito, de sopetão. Acelerando de improviso, o tempo, esse manhoso, não o estaria enganando, apanhando-o ao pé da curva?

Sentou-se modestamente bovino a convite do patrão, o Dr. Silva, aliás o Silva, o Zé Manel, o aliás que o amigo leitor prefira, fica ao seu bom critério.

Que tinha sido um ano proficiente, o do Silva, que tinha sido um ano muito jeitoso, o do Silva, que se tinha esforçado como uma mula, o Silva, e que o patrão, que tinha muitos anos daquela lida, sabia reconhecer quem o merecia.

Que tal, ó Silva, uma diminuição no salário, insignificante, que o Silva sabe bem como estes são os tempos da amargura, que estes são uns tempos lixados? Digamos, uma diminuição de uns razoáveis dez por cento, olhe que, ó Silva, olhe que os outros, não têm direito a isto, eu cá, por consideração a um funcionário tão promissor, consigo oferecer uma diminuição de dez por cento, a culpa não é sua, Ó Silva, se não consigo oferecer mais. É o que se pode nestes tempos, que Diabo? Satisfeito, Ó Silva?

Cortou cerce a palavra (e a palavra cortou cerce o embaraço do patrão) o Zé Manel, aliás o Dr. Silva, dizendo que bem sabia a qual a conjuntura deste tempo. E que uma diminuição dessas era para ele um alento, um reconhecimento de uma aposta no futuro que o patrão estava disposto a enfrentar contra todas as marés. Tempo melhor viria, estava ele certo, o Zé Manel, ou melhor, o Silva, sabendo que não podia estar mais de acordo, o patrão.

Mais um ano passou, com esforço, dedicação, devoção e perseverando para a glória, o Dr. Silva.

Os cabelos pretos tinham ganho uns irmãos grisalhos.

Chegou o timing da avaliação para o Silva, e o patrão chamou o Silva ao seu santuário.
O Dr. Silva era um rapazote sonhador, ainda. Aquele era o seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados com uma benesse daquelas. Era merecido, não dera uma baixa, não chegara um minuto atrasado.

Ao quesito “Satisfeito, Silva?”, respondeu sorrindo, em jeito de reconhecimento da tímida oferta do chefe: mais uma mísera diminuição de dez por cento no salário.

Orgulhoso do seu esforço, Zé Manel, de seu cognome “o Silva” olhou quase com vaidade para aqueles dois anos e foi sem esforço que se livrou da casinha modesta no centro da cidade, perto do escritório, e alugou uma casita ainda mais modesta nos arrabaldes. Assim não contribuiria para a especulação imobiliária, e deixaria livre o espaço para quem nele tinha nascido, contribuindo para a fixação da população. Elevados motivos patrióticos que Zé Manel sabia que, bem explicadinhos, encheriam de orgulho a família lá na terra.

O tempo, pois, claro que ia passando, um amigo que o velava, pensava o Zé Manel entre os seus botões, na sua casa tão longínqua de tudo que nem escalabitanos que percebessem de touros havia com quem conversar. Um amigo silencioso, mas amigos, palavras para quê?

Todos os anos, vinha outro incentivo. Era a paga de tanto zelo, tantas horas mergulhado em balancetes e livros de contabilidade, diários, razões, copiadores.

E os cabelos pretos a ganharem cada vez mais compadres grisalhos. A cara chupada mirrava a olhos vistos. Fora um rapaz teso, o Zé Manel, mas, sob o peso da responsabilidade e dos cuidados na escrituração, a cada ano que passava mais débil ficava.

Ao ano n, o chefe chamou-o ao íntimo reduto do seu gabinete profissional e comunicou o enésimo corte salarial. Desta vez, a empresa atravessava um período de forma excepcional. Tinham conseguido resistir aos desafios da globalização, apostando na eficiência ao invés dos altos salários, e assim se conseguiram defender, na era da globalização, dos felinos emergentes do novo Novo Mundo. Pelo menos foi o que o Zé Manel entendeu do complexo intróito do discurso do patrão.
Em suma, a redução salarial foi um pouco maior: quinze por cento. Satisfeito, ó Silva?
Mais sorrisos, mais solilóquios.
E mais uma mudança de casa, cada vez mais acanhada e mais apartada do escritório. Agora “o Silva” acordava de madrugada. Comia cada vez menos, o que contribuía para a sua linha e, consequentemente, para uma menor obesidade do povo português. Um Índice de Massa Corporal à prova de qualquer estatística de Bruxelas. A sua tez foi passando de um rosado curado pelo sol da vindima da aldeia de Serpa para um cinzento, digno das brumas de Sintra. Mas o seu Quociente de Felicidade Interior Aparente ia aumentando exponencialmente.

Mais anos passaram, sempre amigos.

Mais irmãos grisalhos. O seu raciocínio limitava-se à lógica matemática. Sonhava com livros de inventários, cadernos de balanços, resmas de actas, folhas soltas de escrituração. Acredite ou não o amigo leitor, dava até impressão que o próprio corpo se transformava. A tez perdia cor, era um homem a preto e branco. Emagrecia cada vez mais, estava fininho como as folhas dos seus livros. As suas formas, creia o leitor, perdiam as curvas, ganhavam arestas cortantes. Geométricas.

Num desses anos, um que correu em contra-ciclo, explicando-lhe o patrão que é assim mesmo que se gere a coisa, em contra-ciclo, isto é, aumentar o benefício quando a coisa corre mal, e diminui-lo quando a coisa corre bem, o Silva, nesse ano de glória da firma, não lhe viu diminuído o salário, apenas cortado o benefício da segurança social. O Dr. Silva, pensou, de si para os seus botões, que assim diminuiria a carga das gerações futuras, isto é, em lhe calhando alguma Maria que quisesse desposar aquele esforçado e cada vez mais pálido e desfeito Dr. Silva, sempre deixaria uma reformazita aos seus pequenos Zé Marias.

No entanto, nos anos seguintes, nada aconteceu. Não foi diminuído. Não foi aumentado.

O Zé Manel, o Silva, o ex-Dr.-Silva sofria de terríveis insónias, preocupado. Bem se esforçava para não lhes dar importância, mas até os colegas começavam a não lhe perdoar as faltas de comparências nas almoçaradas semi-sindicais. Dedicava-se incessantemente aos livros comerciais, respirava a tinta permanente, impregnava-se de números, inscrevia linhas, bebia arquivos & documentos. E nada acontecia, de ano para ano. Não suportava a indiferença.

Quando percebeu o que acontecera, pediu desculpas ao tempo. Envergonhou-se por ter desconfiado do seu amigo. Esse seu amigo, que se encarregou de ir tornando o seu corpo mais etéreo, o seu nariz mais adunco, a sua vista mais cansada, o seu odor menos corporal, as suas articulações mais estafadas, esse mesmo amigo lhe proporcionou, passado tantos anos, a surpresa. Respirou descompassado, num assobio que os pulmões contraídos faziam silvar, como um fole acobreado atiça um fogo antigo, antes de se apagar de vez.

Eis então que, já cinquentão, ouviu do seu patrão (e os seus “misteres” também, numa aldeia de casas caiadas situada algures no firmamento longínquo):
— Ó Silva, a nossa companhia tem uma dívida de gratidão para consigo.

O Silva, aliás o Dr. Silva, baixou a cabeça quadrada, que pesava cada vez mais aos ombros rectos e ao corpo esguio.
— Reconhecemos todos os seus préstimos, ao longo de toda esta carreira. O Silva é um profissional à antiga, dedicado, meticuloso, pontual, organizado, leal. Como somos uma empresa que premeia o mérito, é hora de lhe oferecer uma prova substancial do nosso reconhecimento.
O coração do Silva rebentava de expectativa.
— Além de uma redução de vinte e um por cento no seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem do conselho de administração (e olhe que foi decisão unânime, ó Silva), diminui-lo de categoria profissional. Satisfeito, ó Silva?
A revelação deslumbrou-o. O corpo, já domado pelos anos, retorcia-se, a custo, é certo, de emoção não oleada. O tempo, afinal, não o tinha traído. O mundo sorria.

— A partir de agora, o Silva vai passar a ajudante do sistema informático da contabilidade. Afinal, o Silva é o melhor activo humano do activo imobilizado corpóreo. Para que possa assumir convenientemente essa responsabilidade, a partir de agora, o Silva gozará menos três dias de férias. Satisfeito, ó Silva?
Mais uma vez, mudou-se. Um dia largou mesmo o vício de jantar. Ao almoço, uma simples sanduíche, de preferência de mortandela, como se dizia lá na terra sem nome. Uma mine, a acompanhar, abrindo uma estreita fresta à nostalgia. Sentia-se mais leve, e de facto estava mais magro. A transformação física, com o passar dos anos, adquiria contornos fantásticos. Não se limitava a envelhecer, como qualquer tipo vulgar. As suas carnes (as poucas que teimosamente se agarravam como lapas aos ossos), pareciam dissolver-se. Ano após ano, Zé Manel ficava mais plano e quadrado. Ganhava um leve e curioso odor. Zé Manel, aliás o Dr. Silva, assustou-se quando temeu reconhecer uma fragrância com toques de tinta azul e celulose. Nos raros momentos em que a sua mente o poupava às suas obsessões contabilísticas, Zé Manel, o Silva, não se reconhecia ao espelho, intrigava-se e preocupava-se. O que só o fazia refugiar inclementemente nos segredos da escrituração mercantil.

Com o aumento dos horários flexíveis e o culto da polivalência, chegava a casa às onze da noite e levantava-se às três da madrugada. Com transportes urbanos e passes sociais incongruentes pelo meio.

A vida foi passando, com novos incentivos e prémios. “Satisfeito, ó Silva?”Aos sessenta e cinco anos, o ordenado equivalia a dez por cento do inicial.

Nada mal, o que o tempo, esse parceiro, havia moldado. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma batata suculenta do quintal dos vizinhos, daquelas que resistiam teimosas à urbe, numa atitude em que ele próprio si reconhecia, elas tinham, como ele, uma fibra de campónio firme, eram leguminosas catarinas-de-eufémia.

O corpo era um monte de rugas flácidas e tristes. O peso acumulado da responsabilidade foi alisando a postura.
Ancilosado, anguloso, fino, frágil, Silva foi chamado pela enésima vez, tantas quanto o amigo mais cúmplice havia permitido. Estafado, “o Silva” balbuciou qualquer coisa que, no melhor dos cenários, só ele conseguiu entender e cumprimentou, em modo de piloto automático, o presidente do conselho de administração.

O tempo, esse, ia passando por ele e cumprimentava-o, pois eram amigos de longa data.

Em jeito de balanço, para o Dr. Silva, o-aliás-Silva, o-aliás-Zé-Manel, o trabalho já estava terminado, o tempo tinha passado. Mais do que isso, seria armar aos cágados. Seria brincar de Deus.

E o dia, num capricho do tempo, chegou:

— Sente-se, Ó Silva. É preciso que se sente, ó Silva. Ó Silva, parabéns!!!!! Adeus salário, ele foi eliminado. A partir de agora, tudo o que fizer será “Responsabilidade Social”. Silva, a reputação da nossa companhia está nas suas mãos. Satisfeito, ó Silva?
Lasso, frágil, comprimiu e estendeu-se mais do que as leis da física permitiriam fora do fantástico mundo da narrativa. Perdoe o amigo leitor a inverosimilhança, mas era mesmo isso que aparentava. Sentia-se extenuado. Por fim, atingira todos os objectivos delineados. Tentou sorrir:
— Agradeço tudo o que a firma fez por mim. Mas quero passar à reforma.
(a saga continua)

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18 de julho de 2008

Conto do tempo que passa


Sequer no dia da formatura, José Manuel Silva, aliás, Dr. Silva, entrou em euforias.

Por muito que insistissem os colegas do curso, resistiu aos convites para a jantarada de comemoração. Recusava quase sempre a estroinice académica, quando muito alinhava nos fins de tarde de cavaqueira alimentados a caracóis e a imperial, que quase o transportavam ao convívio na loja da aldeia. Não sendo boémio, nem por isso era desprezado, como seria de temer de um rato de biblioteca como ele. A bonomia alentejana, o seu físico frágil e cara de menino atraíam as raparigas, como se de um irmão mais novo se tratasse. As anedotas que contava com aquele sotaque arrastado e os relatos das pilhagens das galinhas lá na vilória da sua meninice divertiam os rapazes.

Não exultou na formatura, portanto, o Dr. Silva. Já os colegas, aliás os doutores, estavam ébrios de alívio e queriam vingar-se da maçada contínua que os anos de empinanço dos calhamaços de contabilidade geral tinham provocado na sua rotina pseudo-boémia. Anos e anos de borgas intercalados, quando não havia mesmo outro remédio, por curtos períodos de um profundo enfado, a empinar calhamaços e a enganar professores, que, as mais das vezes, fingiam não ver as cábulas que davam a volta à sala do exame.

Naquele dia, o dia decisivo, a expectativa era imensa. O silêncio que reinava nessa informal reunião geral de estudantes era interrompido por bramidos alarves de exaltação, à medida que a funcionária da secretaria pendurava nos velhos placares à entrada da faculdade, com exasperante lentidão burocrática, as compridas pautas finais. O grupo dos Abelardos até às Dianas urrou primeiro, seguiu-se o grupo dos Duartes até aos Fernandos, e por aí adiante, até que, chegada a vez da Zulmira, a algazarra era geral (embora a Zulmira não contribuísse para a dita, resignada a novo chumbo a Matemática I, que arrastava na asa como um peso pesado, desde que para ali entrara, há tantos anos que lhe tinha perdido a conta, o que não era de admirar, tendo em conta como se perdia nas outras contas). Uma vez sabido quem penaria pelo menos mais um anito no purgatório da faculdade e quem se livraria daquela tralha para sempre, a euforia começou (juntando-se paulatinamente os primeiros aos segundos, que haveria tempo para melancolias e arrependimentos, agora era hora de comemorar).

Não se sabe quem começou, mas deram por si, nas traseiras da faculdade, cobertas de erva bravia, participando num pequeno auto-de-fé. Numa pira pífia, queimavam com orgulho de cábula os espessos tratados de teoria do equilíbrio financeiro ou de direito comercial que penosamente tinham deglutido nos cinco anos antecedentes (ou, nalguns casos, menos raros do que a sociedade supostamente seria obrigada a tolerar, muitos mais do que cinco, impostos por tertúlias várias e estudos prolongados de complexas cerimónias de tunas e praxes académicas).
A turba queria era equilibrar-se no trapézio até ao fim do percurso, exercer o difícil ofício de conjugar a aprendizagem mínima do deve e haver dos balancetes com as noitadas na 24 a fazer olhinhos às mulheres dos futebolistas em estágio. Reinventar as propriedades farmacológicas do comprimido mágico de modo a que a pílula fizesse o milagre da multiplicação: responderia, por eles, a pílula, o mais depressa possível ao questionário sobre o equilíbrio entre o capital próprio e o passivo bancário, permitiria, a pílula milagrosa, suportar o batuque electrónico do Kremlin até o sol raiar. O dever, isso era por ora um compromisso a longo prazo: era assunto que deveriam lidar com a seriedade devida quando, inevitavelmente, atingissem a provecta, mas se Deus quisesse sempre longínqua, idade dos trinta anos. Quando acasalassem, tivessem o filho da praxe e assentassem na vida. Até lá, conviria passar pela faculdade com o mínimo dano possível. O que importava era o canudo que, aliás, nunca resgatariam das profundezas da Torre do Tombo.

Já Silva, aliás, Dr. Silva, no dia da formatura, sonhava intimamente com o momento em que o resgatasse, o canudo, das profundezas da Torre do Tombo. Para o levar consigo numa viagem, carinhosa e cautelosamente apertado debaixo do braço até ao apeadeiro da aldeia à beira de Serpa, a sua terra natal, onde a vida vai passando, a passo. Sobressaltada e ultrapassada, de quando em vez, a galope, pelas notícias dos vizinhos. É que, no Alentejo, as notícias dos vizinhos correm, muito mais depressa do que a vida.

Ele sabia, pensou de si para si mesmo no sonolento trajecto da Rodoviária, já com o rolo bem agarrado, que o Pinta-Pombos (que traste de moço, pihava os pombos dos vizinhos e pintava-os, marcando-os como seus), o Espanta-Lobisomens (esse era mesmo marado, passeava à noite o cemitério brandindo o estilete de pau), o Fuça-de-Porco (que teve o azar de nascer com a mesma cara da focinheira que se comia aos domingos na loja da Mimosa) e, talvez mesmo até, o Navalha-Afiada (esse era mais metido consigo mesmo, nunca olhava o semelhante nos olhos, passava os dia entretido aguçando a sua ponta-e-mola na afiadeira que ainda hoje o amolador estava para saber como lhe tinha sumido), que eles todos estivessem a beber a mine, como quem não quer a coisa, à beira do apeadeiro.

O Zé Manel, aliás o Dr. Silva (não vá o leitor ser ludibriado na caracterização do personagem principal pelo seu afinco nos estudos), também era rapaz de as beber, as mines da loja da Mimosa, esse minúsculo bazar, poiso de pequenos e graúdos para observar a vida passar a passo, por entre os raspanetes mimosos da dita cuja, também era rapaz de beber o seu copo com os amigos, só que era só nas férias de Verão, que é quando o bom filho da terra a casa tornava e arranjava vagar entre os tratados e livros oficiais de comércio. Os amigos da primária, pensava o Dr. Silva, aliás o Zé Manel, enquanto a camioneta rodava lânguida nas planícies douradas de sobreiro e azinho, lá se estariam entretendo com a garrafita a gelar as mãos, no apeadeiro da aldeia ao pé de Serpa (que, se tinha um nome, era segredo revelado em pequenino a quem nela tinha nascido e muito a custo partilhado com forasteiros).

Mas o Dr. Silva, aliás o Zé Manel, pensando para os seus botões enquanto a rodoviária planava sobre os pastos ressequidos e o cheiro a pó queimado teimava em intrometer-se pelo ar condicionado (que ia funcionando como a camioneta, muito a custo), passaria a toda a brida por entre os braços abertos dos amigos que o quereriam agarrar, num colectivo abraço orgulhoso e, como uma revienga original do avançado promissor que marca o seu primeiro golo pelos seniores do seu Benfica, escaparia aos colegas e abraçaria em lágrimas, e só a eles, os seus dois treinadores, os seus misteres, aqueles que tiveram olho para a sua carreira, aqueles que sempre acreditaram que o rapaz ia longe, para muito longe dali, para um lugar onde o tempo corresse mais depressa. Escapando às garras dos amigos, abraçaria, antes de todos, os seus pais.
Que diriam, na simplicidade da gente do campo, entre lágrimas contidas, “filho, estamos orgulhosos de ti. És um doutor, home. Agora cuida-te, que aquilo lá na capital é uma selva”.

E assim foi, sem tirar nem pôr.

Zé Manel, aliás o Dr. Silva, não precisou de se equilibrar no trapézio, queimou pestanas em vez de calhamaços contabilísticos em piras pífias, não alinhou em tertúlias colectivas, fintou os seus amigos de infância de braços abertos no campo do apeadeiro e foi a correr abraçar os seus misteres à casa chã pintada de cal, onde tinha vindo ao mundo, numa celebração do golo decisivo marcado pelo puto na estreia, em casa, num estádio a rebentar pelas costuras.

Até aí, tudo nos conformes. Tudo de acordo com o plano que tinha delineado. Tudo no tempo certo. O tempo corria, com vagar mas com acerto, como uma boa moda alentejana. O tempo era seu compadre.

Avisado de que Lisboa era uma selva, fez-se de novo à vida na capital, Zé Manel, aliás o Dr. Silva, apresentando-se à entrevista de emprego orgulhoso por dentro, mas bem modesto por fora. Como os melões da terra sem nome à beira de Serpa, bem feiinhos por fora, mas saborosos e suculentos por dentro, assim ia disfarçado, aperaltado e engravatado como um alfacinha de gema, o novo Dr. Silva, pronto a convencer a promessa de patrão.
(Continua)

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