22 de janeiro de 2008

Outras manhãs

De Invernos idos lembro-me das manhãs cinzentas. Manhãs cinzentas como não se fazem mais.

É a memória que me faz tiritar de frio quando penso nos penosos passos que me conduziam, a medo, rompendo pelo nevoeiro, a caminho da escola.

Antes o padeiro deixava o pão pendurado na porta e trincava-o, ora fumegante, seco e estaladiço e morno, ora molhado na geleia escura. Tomava duche a muito custo e tirava as ramelas dos olhos. Era bom tirar as ramelas dos olhos. A mãe depois enfardava-me em camisolas felpudas, macias, botas pretas, cachecóis, canadianas de lã grossa e empurrava-me, para longe do aconchego. A etiqueta de xadrez que certificava a origem da pura lã escocesa fazia-me sonhar com cavaleiros do Walter Scott.

Parece-me que as roupas eram cinzentas. Não sei se a memória é fiel. Mas tinha uns oito anos e havia qualquer coisa de cinzento em ter-se oito anos em mil novecentos e setenta e nove.

A escola era cercada pela mata e naquele tempo as árvores eram mais altas. Tão altas que a sombra impedia os arbustos de seguir o seu instinto e tornarem-se, naturalmente, verdes. Intimidados pelo breu, pareciam-me melancolicamente negros.

Naquele território plúmbeo, o azevinho tentava-me, oferecendo-me bagas, tão visivelmente escarlates que me feriam o olhar. Dizia-se que eram assim bonitas porque venenosas. Tudo o que luzia parecia perigoso, naquelas manhãs.

Ao longe, ouvia-se o eco do comboio, que, sofregamente, engoliria os sonâmbulos empregados de comércio, de uma penada, pela boca escura do túnel do Rossio.

Todavia, uma vez chegado à escola, abertos os cadernos e trocado o medo pela sofreguidão de aprendiz do mundo, gostava de ver o nevoeiro através dos vidros sujos da sala de aula. O nevoeiro denso e branco, do lado de cá, era luminoso e acolhedor. Parecia guardar todos os males dentro de si, velando por nós.

A Profª Maria do Céu mandava-nos recolher as moribundas folhas do recreio e eram momentos tranquilos. Perguntava de que cor eram as folhas. Colávamo-las nas cartolinas. Gostava de sentir os dedos engelhados pela cola e unidos à força, como a pata de um batráqueo. Gostava do cheiro doce da cola. Havia uns miúdos que, lá fora, gostavam ainda mais, aspiravam-no de copos de plástico que seguravam com as mãos em concha.

Já não gostava tanto, nos meus oito anos, do predicado e do sujeito, dos pretéritos, perfeitos e mais que perfeitos, da tabuada, a álgebra apavorava-me, suplicava à sorte que não me chamassem ao quadro para fazer contas de dividir. Tinha terror das contas de dividir. Mas gostava dos ditados. Gostava de desenhar os arabescos rebuscados daqueles caracteres infantis.

Depois acabava a aulas e regressava a casa, sob o sol do meio-dia que inexoravelmente acabava por vencer a névoa. Ou sob a chuva molha-parvos, que o conduzia lentamente para o bueiro.

No pequeno apartamento, sim, havia cor. Os maples de cornucópias amarelas e grenás, as alcatifas castanhas, os quadros do Botelho, o chocolate a derreter em banho-maria, as gemadas, os pimentos vermelhos a arder nos bicos do fogão, as gravatas berrantes do pai guardadas no armário, o azulejo da casa de banho, o frasco de tinta permanente, os fetos nos vasos da sala, os cravos (ou seriam salgueiros?) na varanda estreita. A preto e branco, só a televisão com os tempos de antena da FRS ou da AD. Mas a televisão transportava-nos lá para fora.

E, lá fora, as manhãs eram cinzentas, os prédios eram escuros, os autocarros de um verde desmaiado, as árvores, despidas. Os transeuntes, pálidos, ensimesmados, flácidos.

Talvez me vestissem de cinzento para me mimetizar com uma época, talvez me quisessem camuflar no nevoeiro, protegendo-me e preparando-me para os cromáticos, pindéricos, excessivos, mágicos anos 80 que aí vinham.

Mas talvez recorde mal.

3 comments:

Anónimo,  28 de janeiro de 2008 às 15:05  

Brilhante! O que andas ainda a fazer na consultoria...? :)

blue 29 de janeiro de 2008 às 10:39  

hmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm. Inspirado! Temos que falar! Temos livrinho!!!!!

Tiago 29 de janeiro de 2008 às 12:16  

Que simpáticos, os meus amigos.

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